III.II.

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Soará estapafúrdio, no entanto, antes de relacionarmo-nos com um alguém, urge o contato com o algo: o amor. Ditar normas e dar-lhe forma não é a minha intenção, caro leitor, porém sempre olvidamos este nobre senhor, habitante mais remoto de nosso âmago. Comiseração, ele exora de mãos atadas. Por esta razão, muitos desconhecem seus almejos e o põem rua afora. Compreendamos seus pedidos, arguamos quando não concordemos, leiamos um soneto com o peito estufado, olhemos os astros; mas, oh, não cometa a nulidade dele, mesmo quando aparentar que não convém sua convivência. Não façam o que eu pratiquei.
 


John intuiu tal pensamento de modo árduo. Quiçá, o seu senhorzinho ainda fosse um jovem rapaz.

A relação familiar, responsável por lançarmo-nos no gigante quintal do mundo, fora falha: os padrões limitam. Lennon não soubera que uma família é sinônimo de amar e que amar não tem forma. Desejara uma mãe e um pai; ser como os demais.
Por que não posso?

Levado ao banco dos réus por si próprio, condenou-se: não o mereço. Se aquela que me gerou, descartou-me, quem quererá a mim? Se aquele que a fundiu e botou em sua terra a semente da vida, da minha vida, jogou-me sal, quem quererá a mim?

Culpado!, bradou o juiz.

A cegueira não permitia sequer vislumbrar quem o guiava, porém, curara-se — de um modo atroz, diga-se de passagem: sua mãe esvaíra-se pelo vasto universo, restando-lhe unicamente sua tia, a quem era muito grato.

No tempo narrado, apenas velejava em seu barco de papel pelo oceano em busca de abalroá-lo no porto menos longínquo.

Colombo estava mais próximo da desconhecida América do que conjecturava.

— Lenny? — McCartney o interpelou.

— Hm?

— Qual sabor quer?

— Oh! Claro!... — Suas bochechas tornaram-se nacaradas. Quanto tempo perdera em devaneio? — Bem, de café, por favor — pediu à atendente da sorveteria.

Paul recebeu o seu e pôs os lábios finos. Creme com passas?, pensou Lennon, assistindo ao pulcro espetáculo.

— No que pensava? — questionou assim alcançaram um dos parques que havia na cidade.

Os sovertes derreteram em seus palatos tivera um tempo; apreciavam o ocaso.

— Nunca estive tão perto de algo que nem mesmo sei. — Sentou-se apoiando-se em seus braços e mãos.
As mochilas com os livros foram colocadas entre eles.

— Como?

— Não faço a mínima ideia, Macca. Meu cérebro funciona desta maneira.

— Isso te incomoda?

— Sim, entretanto instiga: desejo descobrir o que é.

— Cria de Sócrates...

Lennon gargalhou, jogando a cabeça para trás.

— Sabe do que ele fala, não é, Estrelinha? — ciciou em seu ouvido.

Estavam no meio de diversos lírios do vale.

— Claro, Geo. A hora se aproxima.

— Temo!...

— Ora, por qual razão?

— Nunca amamos deveras...

— Quer dizer...?

— Se de fato ocorrer, será seu primeiro amor, Estrelinha. Nosso primeiro amor.

Ringo estagnou-se.

— A mudança está perto de finalizar — exprimiu Paul.

— Finalmente! Não aguento vê-lo tão cansado, Macca.

— Nem eu, nem eu. Além disso, estou com as leituras atrasadas e meu irmão não quer me ajudar a organizar a nossa pequenina biblioteca. Oh! Que Tolstói nos acuda!

— Primeiro, o quão fidalgo é você para possuir uma biblioteca. — O riso escapou pelos lábios de Macca. — Segundo, meu senhor, se Tolstói não acudiu a Anna², quem dirá a nós.

— Senhor? Que careta, mocinho! — disse de modo jocoso. — É uma herança de família.

— Quantas gerações?

— Cinco.

— O uso do "pequenina" foi por modéstia, não foi?

— Não sei... Quer tirar as conclusões por si mesmo?
Harrison ficou estarrecido.

— Como eles conseguem ser assim? — questionou, com a face entre as palmas.

Ringo sorriu.

— Não sei, Geo, não sei...

A estrela principal saía do palco para o aparecer das outras e daquela que, quiçá, era mais apreciada pelos lúgubres e boêmios.

John ergueu-se e aproximou-se, depositando seus dedos nos fios tenros de McCartney, que se deleitava com o espetáculo e toque. Ah! A orquestra!...

— Está me convidando para sua residência, meu nobre senhor?

— Sim... — falou, afastando as mochilas e estreitando o espaço entre eles.

Paul descansou sua cabeça no seio de Lennon. As notas produzidas pelas folhas inebriavam seus ouvidos.

— Quando?

— No sábado, às 10h. Passo-te o endereço e...

A mão vaga deitou-se na perna de McCartney, acariciando a região em círculos.

— Sh... apreciemos!... Tudo é efêmero, afinal.
 
 

²Anna Kariênina, personagem que intitula um dos principais romances de Liev Tolstói, escritor realista russo. Anna falece de forma trágica no final do livro.

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