Caixão de Ar

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*

Lyla observou as gotas vermelhas de seu próprio sangue macularem a relva sem entender como poderia estar sentindo tanta dor. Estava certa de que Érion usou apenas um pouco de magia para empurrá-la. Mas a agonia que percorria seu corpo indicava o contrário.

Se colocou de pé e passou a mão na boca a fim de limpar o sangue que escorria dos lábios. No mesmo instante em que a ideia de convocar Virnan lhe chegou, Érion surgiu à sua frente como se ele fosse um spectu a se materializar.

— Desculpe por isso, "Lya". — Ele falou, chamando-a por um apelido carinhoso.

Isso a atirou em novo redemoinho de lembranças, mas logo se recuperou. O menino daquelas memórias não era o homem diante de si. Aquele garoto estava morto e enterrado pela ambição e maldade do homem que se tornou.

— Você não tem mais o direito de me chamar assim — recordou.

A resposta dele foi um sorriso torto, aliado a um dar de ombros prolongado.

— Para ser sincero, acho que essa não é a questão. O verdadeiro problema é que você não é mais a "Lya", nem a "Lyla" que nasceu poucos momentos antes de mim. Agora, você não passa do animalzinho de estimação de uma auriva.

Ela torceu o nariz e cuspiu o sangue que se acumulava na boca. Mantinha uma das mãos oculta atrás do corpo, enquanto criava uma nova espada de penas.

— Posso lhe dizer o mesmo, afinal você costumava ser menos enfadonho em seus discursos e insultos. É como se o tempo tivesse destruído sua capacidade de criar uma boa ofensa.

Érion andou à volta dela, que moveu-se junto com ele. Balançava a cabeça devagar, como se estivesse entretido em uma conversa interna e divertida.

— Olhando para você, quase sinto falta da nossa vida em Sulitar. Quase. — Ele mostrou os dentes, escorregando a mão sobre o peitoral da couraça vermelha com detalhes protuberantes que pareciam ser uma mescla de espinhos e escamas. A capa, em contraste, era negra e esvoaçava ao sabor do vento, revelando a espada na cintura.

Os olhos de Lyla se fixaram na arma. Tratava-se da espada de seu pai, a qual Érion herdou ao assumir o trono de Sulitar, quando ela foi coroada rainha de Flyn.

A visão daquela espada a fez fincar as unhas na palma da mão ao ponto de sangrar.

— Às vezes, me pergunto quando você se perdeu. — Os pensamentos dela escaparam em voz alta, carregados de revolta. — Quando deixou de ser meu irmão e começou a caminhar para se tornar o monstro diante de mim, capaz de massacrar família, amigos e súditos?

Limpou a garganta pra se recompor, era um desperdício de tempo pensar a respeito. Milênios não lhe deram uma resposta satisfatória e, certamente, nenhuma desculpa que ele pudesse dar seria razoável.

Assumiu uma posição defensiva, enquanto ele balançava os ombros cheio de ironia.

— Três mil anos sem nos vermos e isso é tudo o que lhe vem à mente em nosso reencontro? Tsc! Poderíamos conversar sobre tantas coisas... Meu tempo aprisionado naquela caverna, meu momento de libertação, minha ascensão que se aproxima...

A troça o fez parecer estranho fisicamente. Por um instante, foi quase como se o tempo em que ele caminhava sobre aquela terra tivesse se apossado de sua fisionomia. Contudo, a impressão se desvaneceu tão rápida quanto chegou. Era provável que Lyla tivesse optado inconscientemente por vê-lo assim, todavia a ideia se fixou nela.

— Você tem razão, é tolice de minha parte lhe questionar essas coisas. — Admitiu, debochada. — Mas já que você parece magoado com o meu aparente desinteresse sobre como tem vivido os três últimos milênios, basta pegar a minha mão e poderei ver todo o seu passado.

A Ordem: O Círculo das ArmasOnde histórias criam vida. Descubra agora