Enquanto olhava pela pequena janela do avião, durante as primeiras horas da manhã de quarta-feira, a paisagem composta de nuvens incessantes, me dei conta de que quanto menos coisas você vê, mais sua mente divaga. É como se ela te obrigasse a pensar naquelas lembranças que você tenta de qualquer forma esquecer, mas que não consegue.
Como se esse curativo horrendo na minha testa não fosse lembrete suficiente do por quê de estar nesse avião.
Olhei os assentos vazios ao meu lado dando graças a Deus por não ter nenhuma criança choramingando ou adulto querendo puxar assunto durante as longas horas de viagem de São Paulo até Seattle. Isso mesmo, estava indo para bem longe de casa e se eu tivesse que ficar de papo furado com alguém, acho que já teria me trancado no banheiro do avião – apesar de achar um absurdo chamar aquele espaço minúsculo de banheiro. Para mim, aquilo estava mais para um fosso artesanal do século passado com um buraco estranho no fundo que quase me sugou para dentro, mas quem sou eu para entender os mecanismos de funcionamento de um banheiro a mais de 10 mil pés de altura. Que ótimo! Agora eu ia pensar na altura que estava e ficar enjoada. Odeio viajar de avião. É a minha primeira vez, mas já detesto com todas as minhas forças.
- Com licença, senhorita. Posso lhe oferecer alguma coisa? – a doce aeromoça disse, interrompendo os meus pensamentos.
Ela parecia ser jovem, talvez em seus vinte e poucos anos, magra, alta, e com cabelos num tom de loiro um pouco mais claro do que os meus. Parecia mais uma modelo do que uma aeromoça, mas o que mais me chamou atenção foi o seu rosto. Não seus olhos ou, talvez, a maquiagem muito bem feita. O que me chamou atenção foi a expressão de completa e absoluta despreocupação que encontrei nela. Será que éramos tão parecidas fisicamente, mas tão absurdamente diferentes em outros aspectos?
- Senhorita?
- Ah... não. Não, muito obrigada. Estou ótima.
- Tudo bem. Aperte o cinto que já estamos preparando para descer.
Consegui dizer um leve obrigada enquanto afivelava meu cinto.
Ótimo, Isadora. Deixe a moça pensar que você é louca, pensei.
O anúncio vindo da cabine do capitão confirmou as palavras da aeromoça e me preparei para a aterrissagem. Como gostaria que Nona estivesse aqui comigo. Só de pensar nela, meus olhos se encheram de lágrimas. Era para essa ser a nossa viagem, meu presente de formatura. Minha avó, Beatriz Magalhães, foi minha salvadora e mesmo agora, dois anos após a sua morte, ela ainda conseguia me proteger.
Minha infância não foi igual a de todas as crianças normais. Sim, eu tinha um pai e uma mãe, uma casa grande em uma boa vizinhança e três carros na garagem. A diferença era que eu não vivia lá ou, pelo menos, não na maior parte do tempo. Meus pais nunca aceitaram que o tão esperado primogênito do casal Alcântara Magalhães não fosse um o, mas sim uma a. Eles não conseguiram ver pelo ultrassom o sexo do bebê, mas tinham certeza de que viria um menino para ser nomeado depois do meu pai, Jorge Alcântara Magalhães Jr., e comandar o império financeiro construído por ele.
Grande erro.
Para piorar a situação, minha mãe teve uma complicação durante o parto que a incapacitou de ter mais filhos. Não preciso nem dizer que isso gerou ainda mais desgosto com a minha vinda – como se eu fosse a culpada por toda aquela situação.
Minha avó viu a indiferença com que seu filho e nora me tratavam desde pequena e me tomou debaixo da sua asa. Tinha vezes que eu passava meses com ela e não recebia nem uma ligação dos meus pais e isso pra uma criança de oito anos era desconcertante. Nas festinhas de dia das mães na escola, era a minha Nona quem ia todos os anos, e para a festa junina era ela quem fazia questão de mandar docinhos para que eu distribuísse na sala de aula. Tínhamos um amor mútuo muito forte. Eu sempre a chamava de Nona ou então vó Bia quando estávamos perto de pessoas menos conhecidas, e ela me chamava de Isa, às vezes Isinha. Qualquer que fosse o nome, era sempre chamada com muito amor e carinho.
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[DEGUSTAÇÃO] Um olhar como o seu
Romance"Foi assim que eu fugi. Fugi dos sentimentos de inferioridade, fugi dos abusos que me matavam cada dia um pouco mais e fugi da tristeza de um lar sem amor. Fugi em busca da minha felicidade..." Isadora parecia viver um verdadeiro conto de fadas. A j...