Ana Lara
Era segunda-feira e eu corria para minha rotina. Desde o fim do noivado tenho estabelecido metas e mudanças de hábitos na minha vida. Seis meses atrás eu estava sonhando com meu casamento, vestida de branco, perto das pessoas que eu achei que eram sinceras e me amavam. Depois que a mãe do filho de Breno me procurou, uma semana antes do casamento para me dizer que eu estava "roubando" o pai de seu filho, eu resolvi mudar drasticamente minha vida. A começar pelas crenças. Meu extremismo religioso me levou a acreditar que estava intocável desse tipo de sofrimento. Não precisamos nos anular para estar com Deus. Não precisamos desmerecer quem não pensa como nós para ser fiel a Deus.
Grande tola que eu fui.
Mas o acontecido me abriu os horizontes para tudo que eu poderia vivenciar, mesmo agora, aos 22 anos. Meu cabelo que era na cintura e estava sempre preso em um coque severo agora tinha balanço e ficava mais solto, o castanho sem graça agora tinha vívidas mechas loiras. Eu nunca fui alta, sempre fui zoada nos meus 1, 58. Meu corpo não era ruim, mas minhas roupas não tinham nada de sexy ou jovem em sua composição. Agora eu usava um estilo confortável mas sexy, com calças jeans skiny e blusinhas soltas, trabalhadas em detalhes. Meio romântica, bonita, que caberia em meu orçamento. Geralmente usava sapatilhas por causa do meu trabalho no São Cristóvão. Sou a Secretaria Executiva dos Médicos do setor de Radiologia.
Subir e descer de elevador com uma pilha de exames para laudo?
Sou eu.
Com salto não dava, considerando que eu saia do trabalho as 18:00 horas e ia para a faculdade. Estou no terceiro ano de Direito na Universidade Federal de Mato Grosso. Uma conquista minha, meu maior orgulho. Eu amo o meu trabalho também. Depois da minha mudança em relação a minha aparência tenho atraído olhares no meu trabalho mas eu sei mais que isso. Tenho muitas amigas que se deixam levar pelo papo manso dos médicos, biomédicos e enfermeiros, mas principalmente da Ortopedia. Já ouvi muito nos corredores do São Cristóvão, eles acham que a "plebe proletariada" só serve para uma noite. Mesmo que eu tenha mudado muito dos meus conceitos, não quero dormir com um cara pela primeira vez sabendo que para ele não é importante. Não preciso me casar para ter sexo, sei que não vou morrer no mármore do inferno como meu pai costuma dizer, mas quero uma conexão, que seja importante. E mais importante, não estou pronta. Até lá vou quebrando minhas antigas regras uma a cada vez, sem pressa. O que não inclui ser azarada pela Ortopedia. Confesso, os funcionários do São Cristóvão são lindos, ricos e a maioria solteiros. Dr Gustavo Artuzzo é um dos herdeiros, um ortopedista incrível e lindo, mas um vadio que já ficou com praticamente toda a equipe feminina do hospital. Mas também é um amor de pessoa, por trás de toda aquela aura de safadeza.
Levanto, tomo um banho, coloco uma calça jeans e uma blusinha rosa, sem decote, trabalhada em renda nas mangas e pescoço. Coloco minha sapatilha preta padrão, maquiagem mínima, solto o cabelo e vejo meu reflexo no espelho. É libertador. Apesar de toda a dor do meu único relacionamento de vida fracassado, e de me sentir enganada por todos que sabiam que Breno era pai e não me falaram por uma questão de aparência, sinto que coisas boas me esperam.
-Bom dia pai, bom dia mãe.- Digo já servindo um copo de café, com pressa.
-Bom dia- Responde meu pai sem me dignar um olhar. Ele sabia que meu noivo não era o santo que pregava, mas não me avisou mesmo assim. Ele não consegue aceitar inteiramente essa minha nova fase. Segundo ele eu ainda vou pagar um preço. Meu pai é machista, acha que fiz mal em desfazer o noivado. Acha que são sacrifícios que temos que fazer pelo bem da nossa alma. Que era minha missão ajudar Breno a superar seus pecados e blablabla... hoje eu consigo ser indiferente aos seus comentários dolorosos e sua frieza. Passo a maior parte da semana na casa da minha amiga Carol, ela é da minha turma de Direito e mora próximo a faculdade. Que fica próxima ao São Cristóvão. Que facilita a minha rotina uma vez que moro muito longe de onde estudo e trabalho. E os pais de Carol são muito amorosos e atenciosos. Antes do fim do noivado nunca dormi na casa de ninguém. Agora eu não peço permissão para ninguém e venho para casa nos fins de semana, principalmente por causa da minha mãe. Ela é uma esposa submissa e queria me fazer de um espécime dela. Mas amo meus pais, mesmo com toda a dor que não me ajudou a evitar.
-Vai ficar na casa daquela sua amiga perdida?- Pergunta meu pai com a sua arrogância natural.
- Vou pai. - Respondo com um suspiro. - Carol não é perdida, ela e um amor e me trata muito bem. Gostaria que o senhor respeitasse ela um pouco mais, pois os pais dela me tratam como filha.
-Eu sempre soube que você estudando iria virar a sua cabeça. Se Breno foss...
-Eu não quero falar sobre Breno ou sobre a traição de vocês!- Grito como antes jamais teria feito - Eu estou tentando esquecer que meu próprio pai não abriu os meus olhos para um casamento que me traria tristeza. Você é tão traidor quanto Breno e a família dele. E só falo contigo ainda porque é meu pai.
- Você deveria te-lo perdoado. - Dis, me olhando nos olhos pela primeira vez essa manhã - Não lhe virado a costas quando mais precisava. Agora anda com essas roupas, esse cabelo solto como uma mulher do mundo que não se respeita.
Olho para ele por alguns segundos sem acreditar que meu próprio pai esta me dizendo essas coisas. Ele deveria ser o primeiro a me proteger de alguém como Breno. Mas não, tudo era sobre status. Sobre ser. Me levantei engolindo minhas lagrimas. Eu já chorei demais, não seria mais fraca.
-Eu estou indo, beijo mãe.- Beijo minha mãe, que assistiu a tudo de cabeça abaixada. Sei que ela sofre, mas já não há nada que ela possa fazer. - Eu te ligo durante a semana.
Saio de casa, monto em minha motocicleta, uma Biz 2014, e vou para o trabalho. Moramos em um bairro super simples, com uma comunidade bem humilde mas muito acolhedora. É meio longe do centro, então demoro por volta de 40 minutos para chegar ao meu destino. Lembro de quando falei ao meu pai que iria trabalhar no São Cristóvão e ele quase me amarrou em casa. Tudo para o meu pai iria me corromper. Se dependesse dele eu me casaria aos 16 anos e não estudaria nem trabalharia.
Hoje quando penso, não me lembro de uma demonstração de afeto sincero de Breno para mim. Beijos castos, carícias com zero sensualidade, tudo certinho como esperado. E Breno era lindo e tinha status. Mesmo com a prova de sua traição em carne e osso alguns ainda me condenaram. Eu abandonando o meio religioso só serviu para que fosse mais julgada.
Ainda dói as amizades que perdi, ainda dói ser condenada e vista como alguém indigno. Mas cada dia dói menos. E é assim que decidi viver, um dia de cada vez.
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SEM CULPA - DEGUSTAÇÃO
RomanceSinopse Ana Lara Desde que nasci vivi para corresponder às expectativas dos outros: Meus pais, a igreja, então meu noivo... mas todos me traíram, tudo se desfez, de maneira que me fez questionar todas as verdades absolutas nas quais fui condicionada...