Beligerância

75 12 8
                                    

Algum frade tinha saído de sua cela para andar pelo convento. Se fosse Guilhermo, os acusaria de trabalharem para o demônio. Se fosse qualquer outro frade, seriam denunciados. De qualquer maneira estavam em problemas.

O frade veio cambaleando, parecia um homem gordo. Não podia ser Guilhermo.

Os três se levantaram para ver melhor, e quando Júlio deu alguns passos em direção ao misterioso homem, o último se assustou e começou a correr de forma desleixada.

— Eu vou atrás desse homem. Enterrem esse frade, rápido! — Gritou Júlio enquanto saía em disparada para tentar interceptar o espião.

Armindo e Francisco começaram a colocar o hábito de volta no corpo, enquanto o professor foi atrás do quarto frade.

Aquela neblina súbita, porém, não era de bom auxílio. Júlio correu na direção do homem, mas logo o perdeu de vista. Seguindo as pegadas, porém, conseguiu encontrar sua trilha, e viu o frade mais uma vez.

O espião soltou um grunhido estranho, fanhoso e cansado. Ora, parecia um velho. Os velhos são os supersticiosos, o que é que aquele homem estava fazendo fora de sua cela em uma ocasião como aquela?

A perseguição continuou acirrada, com o exorcista perdendo-o de vista repetidas vezes. Já não sabia aonde estava indo e a neblina só parecia piorar as coisas.

Em um momento, porém, alguma construção cercada de velas permitiu ao professor ver o frade entrando em algum lugar.

Este lugar era a capela.

Júlio adentrou a igreja rapidamente, mas não havia ninguém lá.

"Ora, desapareceu?". Pensou, até que ouviu um barulho que parecia vir do chão.

Seguindo esse barulho, ele se deparou com uma portinhola, a portinhola que levava direto a uma cripta subterrânea, a mesma onde António tivera sido deixado antes de seu funeral.

Júlio desceu as escadas e começou a andar cautelosamente. Aquele não era um território familiar, e a iluminação era escassa. Ele pegou uma vela para guiá-lo e seguiu pelos corredores, escutando alguns sons abafados de passos à sua frente.

Em certo momento, os corredores acabaram, e o professor deu de cara com um salão totalmente escuro. Com sua vela, aproximou-se e olhou rapidamente para a direita. Antes que pudesse olhar para a sua esquerda, porém, alguém o derrubou por trás.

Júlio foi pego de surpresa, mas já sabia o que estava acontecendo. Deu um soco às cegas que acertou seu oponente desconhecido, que cambaleou para trás e pisou na vela que havia sido derrubada.

O ambiente estava totalmente escuro de novo. O professor tentava acertar golpes, mas falhava. O desespero tomou conta, e Júlio resolveu ficar parado para ouvir os movimentos do adversário.

Nada podia ser ouvido, mas um outro golpe acertou o exorcista. Dessa vez um soco bem encaixado em sua nuca que o fez cair para a frente. Desesperado, Júlio tentou lutar contra o atacante, fazendo quaisquer movimentos que tirassem o misterioso agressor de cima dele.

Suas tentativas, porém, foram vãs. Um primeiro soco atingiu-lhe a cara, seguido por dois mais. O exorcista estava sem defesa, atordoado. Sabia que o quarto lhe esperava, então apenas fechou os olhos e esperou pelo impacto.

O barulho que ouviu, porém, não foi a mão fechada do adversário rasgando o ar, mas novamente alguém se lançando em cima de outra pessoa.

Abriu os olhos. Lá estavam seus dois companheiros lutando contra o quarto frade. Eles tinham trazido velas, e agora o cômodo estava novamente iluminado.

O homem misterioso era forte, mas Armindo e Francisco eram dois. Com golpes certeiros, derrubaram o oponente de cara no chão.

Ajudaram Júlio a se levantar e pegaram suas velas. Foram até o frade derrubado e viraram seu corpo para revelar sua face.

Quando viram quem era o homem que havia os espionado, Armindo e Francisco entraram em absoluto choque.

— Fernão?

Fernão era o frade velho que, no dia da descoberta do corpo de António, havia acusado Armindo de tê-lo matado.

Era um homem já velho, e os golpes o tinham deixado inconsciente. Que é que estava fazendo fora de sua cela? E como conseguiu subjugar o professor?

De repente, os olhos de Fernão se abriram. Não eram, porém, olhos humanos. Eles estavam tomados por fogo, assumindo uma cor laranja forte que iluminou toda a sala.

Todos os frades cambalearam e taparam seus olhos, evitando a cegueira. O velho, porém, abriu os braços e começou a falar em uma voz demoníaca:

"Escondeu-se após obscuro pecado
Nas sombras, tomado pelo pânico
Ocultou-se por ser homem pós-adâmico
Tal como este, aceitou ser condenado

Não conseguiu apagar tudo o que fez
Sem ter tentado, desistiu por muito pouco
Quem dirá que é na mente de um louco
Que ainda se esconde a lucidez?

Pois a um frade misterioso
E ao agora revelado afligem
os demônios. Vê-se do mal a origem
O pior pecador é o escrupuloso

A solução não se encontra, porém
Por acaso, ou perdida ao relento
Está na sede de todo conhecimento
Que outrora foi usada para o bem"

Após terminar o macabro poema, o fogo dos olhos do frade se apagou, e o mesmo fechou os braços e caiu para a frente, de joelhos.

— Por favor... deixem-me aqui...vão embora. — Ele deu uma grande pausa. — Eu sinto muito...não direi nada. Eu ficarei bem.

Após dizer essas palavras em voz fraca e baixa, desabou para a frente, inconsciente.

Francisco e Armindo ficaram em estado de choque, mas Júlio pegou os dois pelo braço e correu para a saída.

— Realmente vamos deixá-lo aí? Isso não é perigoso?

— O homem estava possuído. O que ele recitou não foi um simples poema macabro, mas uma profecia, ou melhor, uma explicação. Vamos logo.

Eles saíram da capela sem entender bem o que havia acontecido.

— Armindo, me foi dito que você tem excelente memória. Consegue transcrever o poema? — Indagou o professor.

— Certamente.

— Faça isso. Amanhã nos reuniremos para ler. Creio que esse caso já esteja praticamente resolvido.

A confiança de Júlio mostrava que ele tinha visto algo que nenhum dos dois tinha percebido até então. Os frades, porém, foram dormir. Já era tarde e todos estavam cansados.

Se antes suspeitavam de um simples assassinato, agora sabiam que o buraco ficava bem mais embaixo.

E o que diabos Fernão tinha a ver com tudo aquilo?

Com afeto, Frade AntónioOnde histórias criam vida. Descubra agora