Anjos Existem

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Imaginem um trem vindo ao longe apitando e fazendo aquele barulho característico de frenagem quando já se aproxima da estação. Há um burburinho entre os passageiros, um frenesi que antecede a chegada do trem ao seu destino. Uma jovem continuou sentada e quieta, pois sentia seu coração bater em compasso com aquele barulho, mais assustado que curioso, enquanto olhava pela janela e na curva via os vagões da frente do trem. Os anjos da guarda existem e agem, pois ela tirou os olhos dos vagões e olhou para o local, para a paisagem e viu umas casinhas escuras sobre palafitas num terreno pantanoso. Teve um sexto sentido será? Não sabemos, mas seus olhos se encheram de lágrimas com aquela visão.
Mais tarde veio a saber que seus olhos marejados a livraram de morar naquele lugar onde já estava alugada para ela uma das casas de palafitas.
Anjos existem!
Era setembro, começo de primavera. Mas a primavera não chegou naquele lar, com um bebê alérgico a leite que chorava quase a noite toda e um homem que tivera um AVC e sofria com dores horríveis em razão da hemiplegia. Só mesmo o instinto supera o medo, a desesperança, e dá forças para aquelas duas mulheres.
Mãe e Filha. Neto e Avô.
À noite tudo ganha um novo contorno, e torcemos pelo raiar do dia.
Ambos precisavam ir aos médicos, fisioterapias, vacinas, procurar leite de cabra, enfim.
No início das situações difíceis como essas, as pessoas são solidárias, oferecem ajuda, buscam com seus carros. Mas até quando?
Eis que a concessionária liga e avisa que o consórcio recém feito (sete meses, apenas) foi sorteado e seu carro zero está a sua disposição.
Anjos existem!
Gosto de contar histórias. Se as histórias são pessoais ou não, reais ou imaginárias, não importa. São as histórias duma outra época da vida e que são rememoradas durante esse período de isolamento.
Período esse em que estamos ficando
impessoais. Nãos nos vemos e se nos vemos não nos tocamos. Ninguém mais vê o nosso sorriso. Não nos damos as mãos nos cumprimentos e nem tradicionais beijinhos na face. Não existem mais os rituais de despedida, se alguém da família é levado ao hospital com suspeita da Covid-19 já vai para o isolamento e seus familiares só o verão quando sair.
Se ocorrer o óbito, o corpo de quem morre não é mais da família, sai do hospital direto para duas horas de despedida e pronto.
Como naquela  chamada do programa televisivo Big Brother a cada um que desaparece coloca-se um X e apaga-se a foto da pessoa.
A morte e como se lida com ela sempre foi uma experiência individual. O sentimento, o luto, a saudade são individuais e únicos. Há quem chore copiosamente e há quem não derrame uma lágrima. Mas jamais se poderá mensurar quanto ou como é a dor de cada pessoa.
Fala-se pouco sobre a morte, não é um assunto que se discute abertamente.
E agora, simplesmente ela se tornou notícia, manchete, cenário, expectativa, rotina.
Enquanto estamos em isolamento social eu estou aqui corajosamente escrevendo sobre o que percebo de mudanças  em razão da pandemia COVID-19.
A nós, simples mortais, no sentido literal da palavra eu penso que cabe nos fortalecermos em nossa fé, e de certa forma nos despersonalizarmos um pouco também, por nós mesmos, pelos nossos, por nossa saúde mental.  Temos que olhar a vida como se fosse através de uma luneta ao contrário.
E principalmente manter a esperança.
Fazer atividades prazeirosas em casa, ouvir música, cuidar de plantas, jogar com as crianças, fazer sessão de cinema com pipoca e tudo, fazer roda de  contaçao de histórias, procurar manter um clima leve, pois apesar de tudo estamos aqui, vivos e esperançosos em que a vacina, os remédio ponham um fim nesse  período que estamos passando.
Passada essa reflexão nada alegre, mas a meu ver necessária, continuo  a contar histórias.
Então vamos comprar um bilhete, quem sabe seria premiado e nos tiraria desse sufoco financeiro. Aí, apenas por curiosidade vc lê o mural de onde foi comprar seu passaporte para uma vida melhor, quem sabe? E vê o edital dum concurso, inscreve seu filho recém saído da adolescência e ele é um entre quinhentos e trinta e cinco e o único aprovado no Estado?
Hoje você o vê realizado, com uma linda família, produtivo, cheio de amor pela vida e percebe que seu menino se tornou um homem íntegro. Seu coração de mãe se alegra e vc diz baixinho:
Anjos existem!
E quando seu neto de nove anos pede que lhe criem um e-mail para poder se comunicar com a vovó no período de isolamento e passa a lhe mandar e-mails de saudade?
Anjos existem!
Cada bom dia, como vai, estou com saudades, que nos chegam pelos meios virtuais nos demonstram amor e saudade e nos dá alento e alegria e ao sorrirmos por debaixo das máscaras  sentimos que,
Anjos existem!
Assim como acontece quando as compras chegam, fazemos nosso alimento e servimos a mesa, em toda
a rede de produção que faz o alimento chegar a nossa mesa agradecidos pensamos:
Anjos existem!
Anjos existem em todos os profissionais que estão à frente nos serviços de saúde, limpeza pública, policiamento e tantos outros que estão trabalhando em Home Office.
É importante mantermos a estabilidade emocional, por nós, pelos nossos familiares, pelos nossos amigos, pela nossa cidade que não deve ter seu sistema de saúde sobrecarregado e, se possível agir no sentido que alguém ao pensar em nós, também diga:
Anjos existem!       
                                   

Contos da Quarentena 1- A pandemiaOnde histórias criam vida. Descubra agora