Existem algumas coisas que você começa a reparar quando você fica muito tempo com sua família numa casa que não tem nem sinal de celular. Por exemplo, eles tinham uma rotina muito bem estruturada e seguiam-a religiosamente quando não estavam se preocupando com alguma coisa que envolvia a festa de São João. Acordavam mais ou menos as seis, vovó fazia um Cuscuz ou um beiju, dependia do dia, mas o café era essencial, não faltava nem um dia sequer. Vovô sempre se sentava na ponta esquerda da mesa, ele que colocava os jogos americanos amarelos com desenhos de galinha toda manhã na mesa enquanto ela cozinhava. Ele acordava com um bom humor que eu nunca tinha visto parecido, já devia amanhecer pensando em uma piada sem graça pra contar ou uma musica pra cantarolar.
— Jesus abençoou com sua mão divinaaa... Pra não morrer de saudade vou voltar pra Petrolina! — ele cantarolava e se virava pra mim — 'Ocê conhece essa, Lulu? Essa eu aprendi quando eu era menino ainda!
Geralmente só negava com a cabeça e voltava a comer meu cuscuz com ovo, mas não era como se sua animação não continuasse ali depois disso. As vezes uma conversa surgia dessas musicas ou das piadas, como no dia que eles discutiram se eles realmente tinham passado pela ponte Petrolina - Juazeiro antes ou depois das meninas nascerem.
— Deixa de ser bobo, homem, foi antes! — ela reclamava — Eu tava gravida de Renata, fui com um barrigão, tu não lembra?!
— Ah, Marlucia, 'ocê deve 'ta caducando! — ele rebatia, rindo — Pois eu me lembro de nós dois indo e as menina de mão dada com cada um!
As vezes a discussão ia tão longe que eles levantavam pra procurar prova! Vovó 'tava certa daquela vez, a foto revelada realmente mostrava seu barrigão de gravida. Mas vovô também estava meio certo, parando pra pensar, pois minha mãe estava de mão dada ali com ele, ela tava gravida era de Ivonete. Em um empate, os dois não conseguiram parar de rir lembrando daqueles dias, e de como eles eram bestas por discutir por aquilo.
Durante a tarde suas rotinas já variavam um pouco, as vezes vovô ia se deitar e vovó saia pra procurar sei lá quem (Até me chamava pra ir junto, mas eu sempre negava) As vezes vovô me chamava pra jogar buraco, enquanto vovó fazia crochê. Entediada, acabava acatando ao seu chamado, tive que aprender todas as regras pra jogar buraco bem rápido, mas até que peguei o jeito, e em pouco tempo até consegui vence-lo.
— Ahhh! — ele exclamava toda vez que perdia. — Não acredito que 'tu tinha essa! — ele apontava pra carta da mesa. — Ta ficando boa pra peste, hein Lulu!
Não podia deixar de rir, as vezes ele insistia pra mais gente entrar no jogo "o bom é jogar de dupla" ele dizia, mas aparentemente Ivonete e vovó não suportavam o jogo, então sobrava pra mim mesmo. Ele me ensinou a jogar paciência também, mas preferia jogar buraco, afinal. Sempre tinha um lanche pela tarde, uns biscoito de polvilho com um suco, outras vezes um beiju, as vezes uma fruta... Não tinha tanta unanimidade nesse sentido, todo dia podia ser uma coisa nova, as vezes eles me davam dinheiro pra comprar alguma coisa na mercearia também.
Uma coisa que os dois sempre faziam era sentar pra ver televisão, as vezes assistiam o filme que passava na sessão da tarde, mas sempre viam as novelas, só não viam a novela das seis porque batia bem na hora da janta. Entendiada, logo depois de conversar com Bella, acabava até prestando atenção em uma ou outra, mas a unica que era legal mesmo era a novela das nove: A dona do pedaço. Me entretinha com as histórias da boleira e sua filha traíra, claro, tinha outras coisas também, mas a graça da história era essa.
Á noite era janta, novela das nove, um pouco de dengo entre eles e depois ir dormir bem cedo, logo depois da novela. Eles eram bem carinhosos até, não só entre eles, como também comigo. Confesso que gostava daquele chamego todo deles, nem minha mãe e meu pai eram muito carinhosos, minha mãe mesmo não suporta abraço, mas com eles dois a história era bem diferente. Por mais que estar no interior fosse um saco, fui aprendendo a conviver com eles aos poucos, e admito que estava aprendendo a gostar.
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Xote de Itaperã
أدب المراهقينLuiza encontra-se inconformada ao planejar seu mochilão incrível para Chapada Diamantina com seus amigos, só para ser interrompida de última hora por seus pais, que falam que na verdade ela terá que passar as férias em Itaperã, o interior de fim de...