Gosto metálico sobe a garganta quase de imediato após um soco atingir o nariz, sangrento. Os gritos perderam a potência desde o começo, há uns um minuto e meio, quando a moça despertara com pressão pesada nas articulações dos braços. O grito agora é gemido e engasgado, também choroso. Resistência fracassada engrandece a perspectiva do fim desta cena, o fim de Vitória. E a morte ganha massa de medo à percepção auditiva dela, afirmando que o grunhido animalesco acima é de seu pai, à percepção olfativa, lembrando-a do perfume Malbec consumido pelo pai, mas complementado por um odor forte de suor, e outro mais forte ainda, não vindo do agressor, expansivo por todo o ambiente. É podridão. E é então que a visão esquerda (a direita arde e não consegue enxergar) foca, detrás do bruto encorpado encima dela, a sombra gigantesca e assombrosa de sua...
- Mã-ãe. – Consegue produzir, chamando, implorando ajuda.
- Eu, querida. Venha com a mamãe. – A voz soa doce e clara, até após o alívio esperançoso da filha, quando completa: - Venha com a sua mãe ao inferno. É quente como no verão.
A sombra então estende os braços, com labaredas escuras de fogo dançando, convidando Vitória para um novo lar.
Vitória entra em estado atônito. Cessa os gemidos, apenas chia buscando respirar, e chora. Sente o rosto queimar, os ossos ainda estalando, quebrados, como a mandíbula deslocada; e as fraturas prosseguem. O tecido fino de esperança fora destroçado por garras em chamas, qualquer acontecimento seguinte é desesperador e assustador. Caso morra, se juntará a mãe, no inferno, como ela fora parar lá?; e caso viva, terá de lidar com o peso inconsciente da tentativa de assassinato pelo pai, um peso tão duro quanto a morte da mãe, por que ele está fazendo isso? Entretanto sua meditação breve rompe-se por uma dor aguda na garganta, que a sufoca, e o sufoco junta-se ao líquido vermelho avolumando e engasgando. Ossos nasais partem com um soco de esquerda. A cara tornou-se inchaços e vermelhidão espessa. O findável destino da mulher aproxima-se em forma de nuvem, escurecendo e desfocando a visão. Seu último pensamento antes de a escuridão dar seu último golpe é um desesperado imploro a Deus para que lhe envie ao céu, ao paraíso, longe do imprevisível mal.
Também é o momento em que João Braga retorna do passado.
As mãos molengas caem exaustas ao lado do corpo, e a sensação da camiseta encharcada vem na frente. Seguido dela os punhos ganham notoriedade junto com os metacarpos, pela dor, e ele recobra a tempestade, o Ford velho e a esposa manequim com a lingerie favorita no banco do passageiro. Sobre a realidade ofegante o homem sente alívio por um breve momento de paz, um breve tempo concluindo que tudo não passara de apenas um sonho ruim. E então as narinas suspiram profundamente, reprovando logo em seguida um odor amargo vindo de baixo dele. Os olhos estreitam a procura de qualquer luz que revele o que há ali, ficando doloridos pela força, causando uma leve dor na testa, passada rapidamente quando a moldura de um rosto surge sombreada diante o olhar fixado de João, que ao pular com o coração em adrenalina sente pele fria tocar seus joelhos.
Num movimento desesperado para afastar-se daquilo gélido que percorre em outras duas partes ("duas pernas", pensa ele), o grandalhão apavorado joga o corpo para trás na tentativa de apoiar as mãos na cama. Falha. Ao passar do extremo do colchão, ele cai de lado com um giro da pança que estatela em madeira fria. O medo é tão denso e paranoico que elimina a dor do baque estalado, revigora as forças e o faz erguer-se, mesmo que com dificuldade demente. E cambaleando o homem encontra a parede, e tateando mais um pouco, o interruptor. Luz fluorescente branca acende com um clik. O homem vira a cabeça. As pálpebras abrem até seu limite, seguidas pela boca.
João Braga D'avila petrifica-se com a cena da filha morta, vestindo camisola branca sem mangas, pernas estendidas e braços abertos, crucificada sobre o próprio leito pelo senhor que prometera a Deus a vida para cuidar da pequena Vitória, 27 anos no passado. Juntara as mãos na sala de espera do hospital Santa Casa, de Ubatuba, rogando primeiro a Ele que salvasse a filha do nascimento prematuro, para depois erguer as mãos lacrimoso jurando cuidado extremo e sacrifício de seu próprio ser. Porém agora, 27 anos no futuro, a incredulidade diante o realismo absurdo e sangrento ao qual assiste fisga uma peça de dor grotesca das suas memórias. O valentão, erguendo-o como criancinha do fundamental. A culpa, engolindo-o carnívora e esfomeada. Ambos ressuscitam com o mesmo baque de antes, poderosos regenerados. "Matei minha esposa, matei minha filha, matei minha família, matei minha vida", afirma João, ainda paralisado. Uma voz responde:
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Os 4 Nascidos (POSTANDO)
HorrorNada pode ser pior que uma doença sem precedentes que se espalha pela terra, exceto a presunção de alguém que quer controlar quatro forças além da imaginação. Acima do bem e do mal, entre o sagrado e o profano, 4 nascidos caminham sobre a terra. ...