15. Manuela

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24 de dezembro de 2014, às 23h50

— O que mais tem nessa sua bolsa da Mary Poppins? — Nathan me perguntou e o peguei olhando com curiosidade para a minha mochila ainda parcialmente aberta.

— Eu te disse. Tudo o que é importante. — Peguei-a e a estendi para ele. Nunca houve segredos entre nós, eles não começariam agora, muito pelo contrário.

Nathan abriu a mochila com cuidado, como se estivesse mexendo em um tesouro e, de certo modo, estava mesmo. Primeiro, veio em sua mão uma foto minha com minha família completa, com Allan. Depois, um porta-joias que fora da minha avó, e depois um cordão que minha mãe me dera, e depois uma caixinha de música que meu pai me presenteou quando eu ainda era um neném, e depois um pequeno caderno com as receitas que Allan mais gostava e que dizia ser essenciais, e depois uma caixa de lápis de cor surrada, com os cotocos restantes.

— Você ainda guarda isso? — Pela primeira vez naquela noite escutei a voz de Nathan falhar e isso me fez vacilar. Apenas concordei com a cabeça.

Ele voltou seus olhos para a caixa em mãos e, após alguns instantes, me fitou novamente.

— Tem certeza de que você quer fugir das suas lembranças? É tudo o que você carrega nessa mochila.

— Não sei. — Suspirei. — Acho que apenas quero me sentir parte de um lar novamente.

Nathan concordou com a cabeça e olhou para os seus patins. Não consegui entender a sua reação, mas fiz como ele e calcei os meus.

Era melhor verificar se Nathan havia amarrado os cadarços direito. Sabia o quanto era difícil para ele estar ali, passando por cima de um medo. Queria retribuir tudo o que ele havia feito para mim, não apenas naquela noite, mas em todos esses anos de amizade.

Agachei-me perto dele e conferi os laços.

— Fiz certo? — ele perguntou.

— Parabéns! Além de falar e andar, sabe amarrar os patins. Não é incrível?

Ele sorriu, parecendo estar encabulado.

— Preciso dizer que é brincadeira, Nathan?

— Não, eu sei! Claro que não precisa – negou com rapidez. — É que não é tão fácil...

— Eu sei. — Eu me levantei e estendi a mão para ele. — Agora sou eu que estou pedindo para você confiar em mim. Pode ser?

Nathan não hesitou um segundo sequer e segurou a minha mão.

— Não é em você que não confio. Não confio é nas minhas pernas e na minha falta de coordenação motora.

— Está subestimando a minha habilidade de ensinar você a andar de patins, é isso mesmo?

Nathan apertou a minha mão mais firme, como se dissesse que estava pronto. Dei algumas diretrizes básicas para ele, e o guiei em direção à pista, caminhando devagar — beeeeem devagar. Pensei em brincar dizendo que o objetivo era chegar até a pista antes do Natal de 2016, mas sabia que isso ia deixá-lo mais tenso ainda.

Quando, enfim, chegamos à borda dela, recordei as orientações e frisei a mais importante:

— Seu corpo tem que estar relaxado, Nathan. Quanto mais duro ficar, pior.

Balancei os seus braços tentando fazer com que ele se soltasse. Não foi uma boa ideia, pois Nathan se desequilibrou e quase me levou junto.

E ainda nem estávamos no gelo.

Desci primeiro para a pista e ele veio logo atrás, sempre segurando minhas mãos. Assim que encostou no gelo, se agarrou a mim como se sua vida dependesse disso. “Quase Caímos — parte dois”.

— Por mais que goste do seu abraço, assim não vamos ter muito progresso, Nathan.

— É?

— Bem, primeiro você tem que se manter em pé sozinho e...

— Não. Me referia a você gostar do meu abraço.

— Ah, então. Acho já estou meio que gostando deles, sim.

— Meio que? — Ele levantou uma sobrancelha.

— Você entendeu!

Dei um soquinho em seu braço e aí não teve “Quase Caímos – parte três”, e sim, “Caímos Feio Mesmo”. Nathan conseguiu o impossível: mesmo parado, enroscou as pernas nas minhas, nossos patins se embolaram e juntos fizemos uma viagem rápida até o gelo.

Minha primeira preocupação foi com ele. Nem conferi se eu tinha quebrado alguma coisa e já saí tateando o seu corpo com força. Se ele gritasse, eu entraria em desespero. Escutei um barulho vindo dele, e prestei atenção. Ele estava... rindo?

Eu o virei para cima, de modo que ele ficou de costas na pista.

— Por que você tá me batendo, Manu?

— Seu...! — não completei e também virei de costas, rindo com ele.

Ficamos naquele chão gelado, que nem dois retardados. Quando não aguentava mais de tanto que a minha barriga doía, me levantei e o ajudei a fazer o mesmo. Novamente, Nathan se prendeu a mim e, sinceramente, começava a duvidar de que isso tudo era medo de patinar.

— Um dia vai ter que me contar o segredo de ser tão descoordenado — comentei enquanto tirava resquícios de gelo de seu ombro. Demorei um pouco mais do que o necessário, porque (1) não queria que ele me soltasse e (2) ao mesmo tempo sabia que ele me encarava e (3) eu não tinha ideia do que fazer ou dizer a seguir.

Não precisei pensar muito nisso, pois meus pensamentos simplesmente fugiram com mala e tudo da minha mente quando Nathan encostou a mão em meu rosto, me fazendo olhar para ele. Seu polegar traçou o contorno dos meus lábios, deixando um rastro dormente que nada tinha a ver com o frio. Seu olhar encontrou o meu como se procurasse por alguma resposta, e encontrou, pois ele aproximou o rosto e eu não tinha intenção nenhuma de me afastar. Nossos lábios se tocaram de leve e foi como se eu voltasse a respirar depois de muito tempo debaixo d'água.

E eu precisava de mais ar.

Puxei Nathan para mais perto, nunca parecendo o suficiente, e o beijei para não ter de me afogar mais. Os braços dele se mantiveram firmes na minha cintura e, ali, eu soube que o lar que eu procurava sempre estivera ao meu lado.

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