Relembrando tudo e considerando os relatos dos colegas sobre a expressão de Irmãs das Neves, cabelos suados, muito vermelha e ofegante na corrida atrás do resto de seu hábito, penso que fui poupada de ver e enfrentar tamanha fúria.
O assunto tomou conta de todas as turmas do Colégio São José e o desespero, de mim!
Logo percebi que teria que ir para as aulas de ciências bem preparada se não quisesse ficar em apuros.
Explico; Irmã das Neves avisou que em uma aula da semana sortearia o número do estudante que teria que descrever e explicar detalhadamente uma determinada experiência dentre as estudadas em aula até então.
A matéria nunca foi meu forte, não despertava meu interesse e requeria muita atenção e estudo para uma compreensão mínima do conteúdo. E sim, a essa altura dos fatos, eu não tinha dúvida que seria sorteada com frequência.
E assim foi. Em casa todos estranharam minha súbita dedicação ao estudo da matéria, mas não davam muita importância, e eu, francamente, não tinha o menor interesse em explicar nada!
Assim, durante semanas o número dezoito – EU – estava entre os sorteados. Estava exausta, nunca antes havia estudado tanto e me sentia condenada fazer experimentos pela eternidade.
Mal sabia então, que a prova de que tudo sempre pode piorar seria demonstrada em breve e de forma tão contundente, literalmente!
Para que fique clara a sequência de fatos, ou sendo mais direta, desastres, que ocorreram é preciso explicar a arquitetura da sala de aula.
A sala tinha sido construída acompanhando o desnível do terreno e assim, a parte dos fundos era acentuadamente mais elevada.
Visando o melhor aproveitamento do espaço, foram construídos degraus com profundidade para comportar com segurança as carteiras em toda extensão da largura da sala. Dessa forma, cada degrau acomodava uma fileira de carteiras lado a lado.
Irmã das Neves entrou na sala de aula muito animada e estava se preparando para o suplício, digo, sorteio, quando a cortina da janela do fundo da sala caiu e o sol atingiu seu rosto em cheio.
Algumas alunas começaram um alvoroço, subindo em carteiras para tentar prender a cortina. A freira logo mandou que voltassem aos seus lugares e agarrou a cortina disposta a resolver logo o problema.
Constatando que não alcançaria o trilho para prender a cortina virou-se e, olhando para mim, pediu que levasse o banquinho que ficava junto da porta da sala.
Entreguei o banquinho e ela, com a mão apoiada em meu ombro, resmungou um "segura que vou subir" e foi. Eu agarrei o banquinho desesperada com a temeridade da freira. Senti o banquinho firme e já estava respirando mais tranquila quando ela começou a dar impulsos para ficar na ponta dos pés e alcançar o gancho que prenderia a cortina.
Eu posso jurar que ela dava pequenos pulinhos e o banquinho acompanhava, mexendo-se alegremente e começava a escapar das minhas mãos.
Desesperada, olhava buscando alguém que me ajudasse a evitar o desastre que antevia. Dei de cara com Alice, goleira do time de handebol. Vendo meu desespero ela, olhos arregalados, estava vindo em minha direção quando o banquinho tombou.
Tentando escorar tudo, banquinho e Irmã das Neves com meu corpo, vi o traseiro da freira crescer em direção ao meu rosto. Nesse momento Alice pulou e agarrou a irmã, livrando-me da sentada da freira.
O que assisti a seguir foi semelhante a um número circense, em que dois acrobatas vestidos de palhaço se abraçam e saem rolando em cambalhotas arrancando gargalhadas da platéia.
Os acrobatas, no caso, eram Alice e Irmã das Neves que, emboladas foram sala abaixo enquanto os alunos começaram a migrar do estado de susto para a incredulidade.
A freira estava escondida sob os anos do hábito e dela só se via as canelas finas sacudindo no ar.
As risadas começaram aos poucos e pouco levou, também, para que se transformassem em gargalhadas.
Eu assistia o meu pior pesadelo e penso que o instinto de sobrevivência me sacudiu e me fez sair discretamente da sala. Alcançando a rua, voei para casa.
Meu estado alternava entre vontade de chorar e gargalhar, mas sempre com a certeza de que o apocalipse havia chegado ao meu mundo.
Entrei correndo em casa já tendo planejado ficar enfiada no meu quarto, pegar uma gripe, o que fosse necessário para ganhar tempo longe das Neves!
Para meu terror, mal pisei em casa meus pais me chamaram para uma conversa! Isso não é normal, isso não está nada bom eram os pensamentos martelando meu pobre cérebro.
Em poucos minutos confessei a Deus todos meus pecados e outros eventualmente esquecidos, me arrependi de todos, inclusive dos que talvez viesse a cometer um dia. Bem, nessa situação toda garantia é bem vinda.
Meus pais estavam sentados na sala muito sérios – isso não está normal – voltava o martelo. Aumentando a minha apreensão, ouço minha irmã fungando e cara de quem tinha chorado muito.
Isso fez a coisa toda parecer muito mais esquisita, pois embora minha irmã não me odiasse, ela não choraria se eu me ferrasse um pouco; no caso, tinha me ferrado muito.
Meu pai parecia um pouco hesitante e minha mãe muito séria. Antes que eu me acomodasse na poltrona meu pai mandou: Sei que gostam da cidade, do colégio, dos amigos, mas está decidido; mudaremos logo para o Paraná. Não faz sentido ficar viajando toda semana agora que não tenho mais negócios aqui.
De repente percebi que todos, pai, mãe e irmã me encaravam intrigados. Eu acho que estava parada com a boca aberta há alguns minutos e eles estranhando a minha falta de reação. Ou a boca aberta, vai saber!
Olhei para meu pai e mandei um "Não faz sentido mesmo!"
Ignorando o olhar ameaçador da minha irmã e a expressão de interrogação dos meus pais, me joguei no sofá mal contendo o riso aliviado e já falando para minha mãe que minha garganta doía tanto que mal dava para engolir água.
Dormi com minha mãe medindo minha temperatura e avisando que ela iria pedir minha transferência na escola.
Irmã das Neves, juro que era louca para ter aulas com a senhora... até o nosso primeiro encontro!
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Crônicas de Humor ou Desespero
HumorQuando a situação torna-se desesperadora, talvez o humor salve... Se não salvar, reze, faça promessa, finja que finge demência. Eu tenho escolhido rir de mim mesma, ainda acho mais prudente.