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Em casa eu tomei um banho demorado, já que aquela energia ruim que eu senti pela manhã ainda estava sobre mim. Após sair todo vermelho, por causa da água quente, fui até a primeira gaveta do guarda roupa para procurar uma camisa limpa, mas algo me incomodou, a gaveta parecia grande demais para as minhas roupas. Acho difícil ter acontecido, mas a sensação que eu tinha era de estar faltando roupas ali, mesmo eu não percebendo nada faltando, alguns espaços vazios deixaram-me intrigado. Após vestir uma camisa branca e uma calça de flanela marrom avermelhada, derramei-me no sofá para procurar o que assistir na televisão, mas pelo visto eu acabaria mais uma vez assistindo algum programa de culinária sob pressão.

O barulho da chuva estava me deixando sonolento, mas miados desesperados me fizeram voltar a atenção para a janela. Lá estava um gato preto que miava desesperadamente enquanto arranhava o vidro a sua frente

— Dom! — gritei assim que levantei a janela e ele pulou para dentro sem hesitar. Estava todo molhado e mancando um pouco, então fui correndo pegar uma toalha no banheiro para secá-lo e, diferente de como fez com os calouros, ele me deixou pegá-lo no colo.

Sentados no sofá, eu estava secando-o e reclamando por ele não ter entrado comigo  no ônibus, e ele ficava miando em resposta, mas uma coisa estranha aconteceu. Quando eu estava secando sua cabeça, meu olhar cruzou com aquelas pequenas bolas cor esmeralda, e seus olhos pareciam profundos como o lago do meu quintal. Eu nunca tinha reparado isso em ninguém antes e uma sensação de déjà-vu tomou conta da minha mente, junto a uma dor de cabeça repentina. Mas dessa vez eu não ia parar, precisava saber de onde eu lembrava ter feito isso. A dor cresceu ainda mais, mas agora imagens surgiram em minha mente, não eram muito claras, mas eu o reconheci no momento em que o vi. Era o cara do meu sonho.

Enquanto refletia sobre aquele cara dos sonhos, debruçado na janela do meu quarto,  a vista do lago parecia tão turva. O barulho da chuva sempre me acalmou, mas estava difícil naquela noite, pois os trovões ecoavam por toda rua e parecia tremer o piso que estava bem gelado sob meus pés, apesar da minha calça de moletom ser bem quente.  Ainda assim eu me sentia estranho e sozinho. O sinal da televisão já tinha ido embora há muito tempo e só me restava observar a dança das gotas de água que escorregavam rapidamente pela janela, do mesmo jeito que as lembranças em minha mente. O lago estava inquieto e, diferente dele, eu me sentia preso àquele lugar, apenas olhando o mundo que desabava lá fora. Onde... onde será que ele está?

Estava perdido em pensamentos quando fui surpreendido pelo bater repentino da porta fechando com força e na frente dela estava ele, o mesmo rapaz da outra vez. Mas, pelo visto, ele não tinha um guarda-chuva, o que me deixava extremamente preocupado, já que sua calça de moletom estava escura pela água e seu casaco azul escuro pingava incessantemente, assim como seu cabelo que estava quase cobrindo seus olhos, mas seu sorriso estava inalterado, estava de ponta a ponta em sua boca. Mesmo estando completamente encharcado, ele me mandava um sorriso infantil de quem fez algo errado e não sabia como falar ou o que falar, ficando um pouco tímido e coçando um pouco a parte de trás de sua cabeça.

— Eu não falei para você levar o guarda-chuva? Dava pra ver que ia chover — falei de forma séria, não que eu quisesse dizer essas coisas, mas as palavras pareciam forçar sua saída por entre meus lábios, num tom preocupado, pois ele poderia pegar uma gripe forte ou uma pneumonia se continuasse com aquelas roupas encharcadas. Ele, no entanto, apenas coçou a cabeça novamente e baixou a visão, assumindo seu erro de um jeito extremamente natural.

— Na verdade... na pressa eu acabei esquecendo, mas trouxe alguns filmes para assistirmos juntos, o que você acha? — disse ele me mostrando os títulos em suas mãos, que dava para passarmos uma longa noite assistindo a perder de vista, enquanto ele dava um belo sorriso que fazia meu coração esquentar diante de tanto frio, porém não me deixei cair nesse encanto.

— Não pense que vai me comprar só com isso, você que vai cozinhar hoje — disse a ele que bufou descontente, mas aceitou seu castigo. Fui ao banheiro pegar a toalha dele e algumas roupas, porém a toalha estava suja de respingos de tinta, como era de se esperar. Enquanto isso, ele tirava seus sapatos molhados, deixando-os no terraço e entrava, começando a tirar a camisa na sala.

— Você deveria tomar cuidado quando for pintar, sei o quanto você quer terminar a pintura do lago, mas não precisa sujar tudo aqui em casa — falei enquanto caminhava de volta para a sala, onde ele já havia trocado de roupa. Embora seu cabelo ainda pingasse, ele já estava sentado no sofá olhando cuidadosamente o filme que iria colocar. Seus olhos começavam a brilhar iguais aos astros do meu céu, o que aquecia meu corpo aos poucos e me dava uma certa excitação, mas eu disfarçava.

— Sua casa é aqui do lado, deveria ir buscar algumas roupas para você. Já estou até vendo você usando uma camisa minha para limpar a tinta das mãos... Quase ia estragando uma minha ontem, sabia? — Ele fingiu não me ouvir, o que me deixava nervoso, fazendo-me andar até ele. De repente algo me vem à cabeça. Eu sinto que sei seu nome, mas a palavra parecia embaçada na minha mente e eu não conseguia decifrar o seu significado. Então fui até ele e joguei a toalha em sua cabeça, ele riu docemente com uma voz grave, que me deixava um pouco trêmulo e ofegante, e começou a se secar, mas ele era muito desajeitado e eu tive de tomar a toalha de suas mãos.

— Se não secar bem o cabelo, vai acabar gripado e com caspa. Você sabe que para tirar é um inferno, não é? Lembre-se que eu faço física, não enfermagem e muito menos tenho especialização em dermatologia — disse pegando a toalha, chamando ele para sentar no sofá na minha frente enquanto começo a enxugar sua cabeça. Ele relutou um pouco no começo, tentando me fazer parar com pequenos gestos de carinho e uma voz bem mansa, acariciando minhas coxas com suas mãos grandes e fortes para me desfocar e tentando roubar um beijo meu ou colocar-me em seu colo, pois gostava de me provocar, mas após me olhar e sentir o clima sério, ele parou e me deixou continuar, porém mal sabia que eu já estava me segurando para não agarrá-lo e beijá-lo incansavelmente.


— Eu não entendo, como alguém que pinta tão bem pode ser tão descuidado? Às vezes você viaja para outro planeta quando está pintando esse lago... — disse a ele, que me respondeu calmamente com um voz doce e encantadora.

— Fácil! Sendo descuidado você vai sempre cuidar de mim, não é legal? — falou com uma maior cara cínica e um sorriso bem doce e bobo, olhando para trás e parando em meus olhos. Eu não estava pronto para aquela resposta e principalmente para seus olhos castanhos que apareciam por debaixo da toalha, o que me fazia ficar corado e sentir meu coração acelerar cada vez mais.

Mas o alto barulho de um trovão me acordou de meus devaneios.

— Dom... eu devo estar sonhando acordado. Eu já convivi com aquele cara, aqui na minha casa? — perguntei terminando de secar o gato e colocando-o ao meu lado, tentando refletir sobre tudo, sentindo os efeitos reais em meu corpo, enquanto Dom me olhava docemente com aqueles enigmáticos olhos castanhos.

O Assassino da Lua 🌒 DegustaçãoOnde histórias criam vida. Descubra agora