VII

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Por esse tempo encontrei em Maceió, chupando uma barata na Gazeta do Brito, um velho alto, magro, curvado, amarelo, de suíças, chamado Ribeiro. Via-se perfeitamente que andava com fome. Simpatizei com ele e, como necessitava um guarda-livros, trouxe-o para S. Bernardo. Dei-lhe alguma confiança e ouvi a sua história, que aqui reproduzo pondo os verbos na terceira pessoa e usando quase a linguagem dele.

Seu Ribeiro tinha setenta anos e era infeliz, mas havia sido moço e feliz. Na povoação onde ele morava os homens descobriam-se ao avistá-lo e as mulheres baixavam a cabeça e diziam:

— Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo, seu major.

Quando alguém recebia cartas, ia pedir-lhe a tradução delas. Seu Ribeiro lia as cartas, conhecia os segredos, era considerado e major.

Se dois vizinhos brigavam por terra, seu Ribeiro chamava-os, estudava o caso, traçava as fronteiras e impedia que os contendores se grudassem.

Todos acreditavam na sabedoria do major. Com efeito, seu Ribeiro não era inocente: decorava leis, antigas, relia jornais, antigos, e, à luz da candeia de azeite, queimava as pestanas sobre livros que encerravam palavras misteriosas de pronúncia difícil. Se se divulgava uma dessas palavras esquisitas, seu Ribeiro explicava a significação dela e aumentava o vocabulário da povoação.

Os outros homens, sim, eram inocentes.

Acontecia às vezes que uma dessas criaturas inocentes aparecia morta a cacete ou a faca. Seu Ribeiro, que era justo, procurava o matador, amarrava-o, levava-o para a cadeia da cidade. E a família do defunto ficava sob a proteção do major.

Também acontecia que uma sujeitinha começava a chorar e acabava confessando que estava pejada. Seu Ribeiro descobria o sedutor, chamava o padre, e o casamento se realizava na capela da povoação. Nascia um menino — e seu Ribeiro era o padrinho.

O major decidia, ninguém apelava. A decisão do major era um prego.

Não havia soldados no lugar, nem havia juiz. E como o vigário residia longe, a mulher de seu Ribeiro rezava o terço e contava histórias de santos às crianças. É possível que nem todas as histórias fossem verdadeiras, mas as crianças daquele tempo não se preocupavam com a verdade.

Seu Ribeiro tinha família pequena e casa grande. A casa estava sempre cheia. Os algodoais do major eram grandes também. Nas colheitas a população corria para eles. E os pretos não sabiam que eram pretos, e os brancos não sabiam que eram brancos.

Na verdade seu Ribeiro infundia respeito. Se havia barulho na feira, levantava o braço e gritava:

— Quem for meu me acompanhe.

E a feira se desmanchava, o barulho findava, todo o mundo seguia o major porque todo o mundo era do major.

Nas noites de S. João uma fogueira enorme iluminava a casa de seu Ribeiro. Havia fogueiras diante das outras casas, mas a fogueira do major tinha muitas carradas de lenha. As moças e os rapazes andavam em redor dela, de braço dado. Assava-se milho verde nas brasas e davam-se tiros medonhos de bacamarte. O major possuía um bacamarte, mas o bacamarte só se desenferrujava pelos festejos de S. João.

Ora, essas coisas se passaram antigamente.

Mudou tudo. Gente nasceu, gente morreu, os afilhados do major cresceram e foram para o serviço militar, em estrada de ferro.

O povoado transformou-se em vila, a vila transformou-se em cidade, com chefe político, juiz de direito, promotor e delegado de polícia.

Trouxeram máquinas — e a bolandeira do major parou.

Veio o vigário, que fechou a capela e construiu uma igreja bonita. As histórias dos santos morreram na memória das crianças.

Chegou o médico. Não acreditava nos santos. A mulher de seu Ribeiro entristeceu, emagreceu e finou-se.

O advogado abriu consultório, a sabedoria do major encolheu-se — e surgiram no foro numerosas questões.

Efetivamente a cidade teve um progresso rápido. Muitos homens adotaram gravatas e profissões desconhecidas. Os carros de bois deixaram de chiar nos caminhos estreitos. O automóvel, a gasolina, a eletricidade e o cinema. E impostos.

As moças e os rapazes não rodeavam, de braço dado, as fogueiras de S. João: dançavam o tango, no frevo.

Um dia seu Ribeiro reconheceu que vivia numa casa grande demais. Vendeu-a e adquiriu outra, pequena. Como havia agora liberdade excessiva, a autoridade dele foi minguando, até desaparecer.

Seu Ribeiro tinha um filho, que jogava futebol, e uma filha, que usava fitas, muitas fitas. Acharam o lugar atrasado e fugiram. Seu Ribeiro escondeu-se, cheio de vergonha. Amofinou-se uma semana, desfez-se dos cacarecos e foi procurar os filhos. Não os encontrou: andavam por aí, ela pelas fábricas, ele no exército.

Seu Ribeiro enraizou-se na capital. Conheceu enfermarias de indigentes, dormiu nos bancos dos jardins, vendeu bilhetes de loterias, tornou-se bicheiro e agente de sociedades ratoeiras. Ao cabo de dez anos era gerente e guarda-livros da Gazeta, com cento e cinquenta mil-réis de ordenado, e pedia dinheiro aos amigos.

Quando o velho acabou de escorrer a sua narrativa, exclamei:

— Tenho a impressão de que o senhor deixou as pernas debaixo de um automóvel, seu Ribeiro. Por que não andou mais depressa? É o diabo.

São Bernardo (1934)Onde histórias criam vida. Descubra agora