XXVIII

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"O Senhor conhece a mulher que possui."

Que frase!

Padilha sabia alguma coisa. Saberia? Ou teria falado à toa?

Conjecturas. O que eu desejava era ter uma certeza e acabar depressa com aquilo. Sim ou não.

"O senhor conhece a mulher que possui." Conhecia nada! Era justamente o que me tirava o apetite. Viver com uma pessoa na mesma casa, comendo na mesma mesa, dormindo na mesma cama, e perceber ao cabo de anos que ela é uma estranha! Meu Deus! Mas se eu ignoro o que há em mim, se esqueci muitos dos meus atos e nem sei o que sentia naqueles meses compridos de tortura!

Já viram como perdemos tempo em padecimentos inúteis? Não era melhor que fôssemos como os bois? Bois com inteligência. Haverá estupidez maior que atormentar-se um vivente por gosto? Será? não será? Para que isso? Procurar dissabores! Será? não será?

Se eu tivesse uma prova de que Madalena era inocente, dar-lhe-ia uma vida como ela nem imaginava. Comprarlhe-ia vestidos que nunca mais se acabariam, chapéus caros, dúzias de meias de seda. Seria atencioso, muito atencioso, e chamaria os melhores médicos da capital para curar-lhe a palidez e a magrém. Consentiria que ela oferecesse roupa às mulheres dos trabalhadores.

E se eu soubesse que ela me traía? Ah! Se eu soubesse que ela me traía, matava-a, abria-lhe a veia do pescoço, devagar, para o sangue correr um dia inteiro.

Mas logo me enjoava do pensamento feroz. Que rendia isso? Um crime inútil! Era melhor abandoná-la, deixá-la sofrer. E quando ela tivesse viajado pelos hospitais, quando vagasse pelas ruas, faminta, esfrangalhada, com os ossos furando a pele, costuras de operações e marcas de feridas no corpo, dar-lhe uma esmola pelo amor de Deus.

Seria? não seria?

Insignificâncias. No meio das canseiras a morte chega, o diabo carrega a gente, os amigos entortam o focinho na hora do enterro, depois esquecem até os pirões que filaram.

Que me importavam as opiniões do Padilha, de seu Ribeiro, de d. Glória, de Marciano? Casimiro Lopes é que não tinha opinião. Quem me dera ser como Casimiro Lopes!

— Isto vai mal, Casimiro, dizia eu com os olhos.

Casimiro Lopes concordava, erguendo os ombros.

São Bernardo (1934)Onde histórias criam vida. Descubra agora