Amanheci um dia pensando em casar. Foi uma ideia que me veio sem que nenhum rabo de saia a provocasse. Não me ocupo com amores, devem ter notado, e sempre me pareceu que mulher é um bicho esquisito, difícil de governar.
A que eu conhecia era a Rosa do Marciano, muito ordinária. Havia conhecido também a Germana e outras dessa laia. Por elas eu julgava todas. Não me sentia, pois, inclinado para nenhuma: o que sentia era desejo de preparar um herdeiro para as terras de S. Bernardo.
Tentei fantasiar uma criatura alta, sadia, com trinta anos, cabelos pretos — mas parei aí. Sou incapaz de imaginação, e as coisas boas que mencionei vinham destacadas, nunca se juntando para formar um ser completo. Lembrei-me de senhoras minhas conhecidas: d. Emília Mendonça, uma Gama, a irmã de Azevedo Gondim, d. Marcela, filha do dr. Magalhães, juiz de direito.
Nesse ponto surgiu-me um pequeno contratempo. Uma tarde surpreendi no oitão da capela (a capela estava concluída; faltava pintura) Luís Padilha discursando para Marciano e Casimiro Lopes:
— Um roubo. É o que tem sido demonstrado categoricamente pelos filósofos e vem nos livros. Vejam: mais de uma légua de terra, casas, mata, açude, gado, tudo de um homem. Não está certo.
Marciano, mulato esbodegado, regalou-se, entronchando-se todo e mostrando as gengivas banguelas:
— O senhor tem razão, seu Padilha. Eu não entendo, sou bruto, mas perco o sono assuntando nisso. A gente se mata por causa dos outros. É ou não é, Casimiro?
Casimiro Lopes franziu as ventas, declarou que as coisas desde o começo do mundo tinham dono.
— Qual dono! gritou Padilha. O que há é que morremos trabalhando para enriquecer os outros.
Saí da sacristia e estourei:
— Trabalhando em quê? Em que é que você trabalha, parasita, preguiçoso, lambaio?
— Não é nada não, seu Paulo, defendeu-se Padilha, trêmulo. Estava aqui desenvolvendo umas teorias aos rapazes.
Atirei uma porção de desaforos aos dois, mandei que arrumassem a trouxa, fossem para a casa do diabo.
— Em minha terra não, acabei já rouco. Puxem! Das cancelas para dentro ninguém mija fora do caco. Peguem as suas burundangas e danem-se. Com um professor assim, estou bonito. Dou por visto o que este sem-vergonha ensina aos alunos.
Mais tarde, porém, cheio de embromações e lamúrias, Padilha jurou por todos os santos que a escola funcionava normalmente e fazia cortar coração deixar tantas crianças sem o pão do saber. Quanto às teorias, aquilo era só para matar tempo e empulhar o Casimiro.
— Eu meto a mão em cumbuco? Sou lá capaz de propagar ideias subversivas?
No outro dia pela manhã, choramingando, balbuciando peditórios, a Rosa, com cinco filhos (três agarrados às saias, um nos braços, outro no bucho), atracou-me no pomar. E eu, que não tenho grande autoridade junto dela, sosseguei-a:
— Mande-me cá o Marciano, aquele cachorro. Até logo, vou ver.
À noite reuni Marciano e Padilha na sala de jantar, berrei um sermão comprido para demonstrar que era eu que trabalhava para eles. Mas atrapalhei-me e contentei-me com injuriá-los:
— Mal-agradecidos, estúpidos.
Amunhecaram, e baixei a pancada:
— Juízo de galinha. Embarcando em canoa furada! Tontos.
Dei-lhes conselhos. Encontrando macieza, Luís Padilha quis discutir; tornei a zangar-me, e ele se convenceu de que não tinha razão. Marciano encolhia-se, levantava os ombros e intentava meter a cabeça dentro do corpo. Parecia um cágado. Padilha roía as unhas.
— Por esta vez passa. Mas se me constar que vocês andam com saltos de pulga, chamo o delegado de polícia, que isto aqui não é a Rússia, estão ouvindo? E sumam-se.
Sumiram-se. Ficou-me um resto de indignação, depois serenei.
— Faz de conta que não houve nada.
Lorotas. Todos esses malucos dormem demais, falam à toa.
— Marciano, coitado, nem por isso. Trata bem do gado, é marido da Rosa.
Quanto ao Padilha, eu sentia prazer em humilhá-lo mostrando-lhe os melhoramentos que introduzia na propriedade.
E recomecei a elaborar mentalmente a mulher a que me referi no princípio deste capítulo. Revistei a Mendonça, a Gama, a irmã do Gondim (eu nem sabia como se chamava a Gondim) e d. Marcela do dr. Magalhães. D. Marcela era um pancadão. Cada olho! O que tinha de ruim era usar muita tinta no rosto e muitos ss na conversa. Paciência. Perfeito só Deus.
Bambeava para me dirigir ao dr. Magalhães quando Costa Brito voou para cima de mim, numa carta, com a intenção de avançar-me em duzentos mil-réis.
Costa Brito tinha virado. A Gazeta, que sempre louvara furiosamente o governo, fugira para a oposição, por causa de um emprego de deputado estadual, e achava a administração pública desorganizada, entregue a homens incompetentes. A nós que votávamos com o partido dominante, mas não éramos peixe nem carne — queixumes, nariz torcido, modos de enjoo. Da minha última viagem à capital, em troca de uma notícia besta de quatro linhas, o diretor da Gazeta ainda me lambera cinquenta mil-réis, no café, bebendo cerveja com indignação:
— Querem jornal de graça. Para o inferno! A vida inteira escrevendo como um condenado, mentindo, para esses moços subirem! Só a despesa que se tem! só o preço do papel! E na eleição, coice. Nem uma porcaria, uma desgraça que qualquer prefeito analfabeto consegue com facilidade. Querem elogios. Está aqui para eles.
Eu não precisava do Brito, mas passei o dinheiro, em atenção a serviços prestados anteriormente e porque não gosto de questões com gente de imprensa. Depois aludi à crise e dei a entender que não continuava a sangrar.
Mas o Brito tem barriga de ema: desprezou o aviso e mandou-me diversas cartas, as primeiras com choro, as últimas com exigências. Essa que me vinha embrulhar os planos de casamento trazia ameaças. Recusei o cobre, num telegrama: "Inútil insistir. Fartíssimo."
Tinha graça viver aqui suando para sustentar um literato. Eu era pai dele?
— Quem pariu mateu que o balance. Uma ou outra facada razoável, com moderação, vá. Ameaças, não. Chantagem, não.
Que diabo diria ele contra mim na folha? Não sendo funcionário público, as minhas relações com o partido limitavam-se a aliciar eleitores, entregar-lhes a chapa oficial e contribuir para música e foguetes nas recepções do governador. O veneno da Gazeta não me atingia. Salvo se ela bulisse com os meus negócios particulares. Nesse caso só me restava pegar um pau e quebrar as costelas do Brito.
Recalquei as ideias violentas e esforcei-me por trazer de novo ao espírito as tintas e os ss de d. Marcela. Vieram. Mas afastavam-se de quando em quando — e nos intervalos apareciam Marciano, a Rosa com os meninos, Luís Padilha e Costa Brito.