XXIII

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Era domingo, de tarde, e eu voltava do descaroçador e da serraria, onde tinha estado a arengar com o maquinista. Um volante empenado e um dínamo que emperrava. O homem prometera endireitar tudo em dois dias. Contratempo. Montes de madeira, algodão enchendo os paióis.

— Desleixados.

À beira do riacho, topei a velha Margarida sentada numa pedra, lavando as canelas finas como gravetos.

— Boa tarde, mãe Margarida.

— Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo, respondeu a negra procurando reconhecer-me com o nariz e com a orelha.

Descobriu-me entre cheiros e ruídos:

— An!

— Como vai isso, mãe Margarida? A saúde?

— Aqui vamos dando, meu filho. Melhor do que mereço a Deus, disse a velha enxugando na saia de riscado os cambitos das pernas.

— Falta alguma coisa lá no rancho?

— Falta nada! Tem tudo, a sinhá manda tudo. Um despotismo de luxo: lençóis, sapatos, tanta roupa! Para que isso? Sapato no meu pé não vai. E não me cubro. Só preciso uma esteira. Uma esteira e o fogo.

— Está direito, mãe Margarida. Passe bem. E saí, agastado com Madalena. Avistei na outra banda Marciano, que tangia o gado.

— Espera lá.

Atravessei a pinguela e fui ver o último produto limosino-caracu.

— Magreirão.

Não estava, mas achei que estava.

— Não me responda, entupa-se.

A culpada era Madalena, que tinha oferecido à Rosa um vestido de seda. É verdade que o vestido tinha um rasgão. Mas era disparate.

— Deitasse fora, foi o que eu disse a Madalena. Se estava estragado, era deitar fora. Não é pelo prejuízo, é pelo desarranjo que traz a esse povinho um vestido de seda.

Madalena respondeu-me com quatro pedras na mão, e ficamos de venta inchada uma semana. Eu por mim remoí um rancor excessivo.

O telhado da serraria era uma nódoa vermelha que as chuvas, aqui e ali, haviam tingido de preto. Na outra margem do riacho a cabeça curvada de Margarida mexia-se lentamente por cima das hastes do capim. E, subindo uma vereda, a figurinha de Marciano colava-se às reses.

— Estúpida! exclamei com raiva.

E pensei no vestido da Rosa, nos sapatos e nos lençóis da velha Margarida.

— Desperdício.

Depois recordei o volante e o dínamo.

— Estúpida!

Está visto que Madalena não tinha nada com o descaroçador e a serraria, mas naquele momento não refleti nisso: misturei tudo e a minha cólera aumentou. Uma cólera despropositada. Esqueci os presentes que, há alguns anos, a Rosa me comeu (pó de arroz, voltas de conta) e as despesas que fiz com Margarida, até automóvel ao sertão, até clichês para o jornal do Gondim. O que me pareceu foi que Madalena estava gastando à toa.

— À toa, percebem?

Repeti para convencer-me:

— À toa. Desperdício.

Por cima do capim-gordura já não se via a cabecinha branca de Margarida. Num cotovelo do caminho o vulto de Marciano tinha desaparecido. Com o descambar do sol, o telhado da serraria estava mais vermelho.

São Bernardo (1934)Onde histórias criam vida. Descubra agora