XXXIV

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Na cidade havia um fuxico nojento. E eu, que nunca tive gosto para safadezinhas de lugar miúdo, entoquei-me.

Lamentava, sem dúvida, que o meu partido tivesse ido abaixo com um sopro. Que remédio!

— É comer agora da banda podre. E calado.

Os Gama, o Pereira, o Fidélis, iam serrar de cima e fazer-me picuinhas. Aborrecia-me de tudo isso. Também não fariam grande coisa. Cortar o arame da cerca, mandar o delegado de polícia tomar a faca de um cabra, na feira, e sapecar-lhe o zinco. Natural.

O pior era Padilha ter seduzido uns dez ou doze caboclos bestas, que haviam entrado com ele no exército revolucionário. Voltariam.

Para quê? Era melhor ficarem na malandragem, nos exercícios.

Bocejava. Cada bocejo de quebrar queixo. Vida estúpida! É certo que havia o pequeno, mas eu não gostava dele. Tão franzino, tão amarelo!

Se melhorar, entrego-lhe a serraria. Se crescer assim bambo, meto-o no estudo para doutor.

Lá vinham os projetos.

— Diabo leve os projetos.

O mundo que me cercava ia-se tornando um horrível estrupício. E o outro, o grande, era uma balbúrdia, uma confusão dos demônios, estrupício muito maior.

Os amigos e os jornais traziam-me a revolução.

— Uma peste! bradava Azevedo Gondim. Foi um bluff. Ameaças pelo telégrafo e pelo rádio, boletins jogados por aeroplanos — todo o mundo se pelava de medo. Isto é o povo mais covarde que Deus fabricou.

— Exagero, opinava o advogado. Houve bravura.

— Que bravura! berrava Gondim. Gente que devia pegar no pau-furado escondeu-se.

— Os da situação passada. Entre os revolucionários é diferente: há idealismo, há coragem. Não digo isto em público, mas há.

— Diabo leve o idealismo deles. E quanto a coragem...

— Vamos ser justos, Gondim, intervinha eu conciliador e murcho. Essa coisa estava na massa do sangue do povo. Não valia a pena brigar.

— Não valia! Ora não valia! Todos iam pensando assim e eles foram entrando. E que falta de vergonha! Figurões do governo apareceram de repente com lenços vermelhos no pescoço.

— Isso foi em Alagoas, atalhava João Nogueira.

— Foi em toda a parte, homem. E mesmo agora, muitos não se passam porque não são aceitos.

— Quanto a mim, declarava Nogueira, tanto me faz estar em cima como embaixo, que política nunca me rendeu nada. Estou embaixo e não pretendo subir. É verdade que sempre achei a democracia um contrassenso. Muitas vezes lhe disse. O diabo é que votei na chapa do governo. Mas, aqui entre nós, a ditadura só não presta porque estamos no chão.

Gondim protestava, indignava-se. E eu:

— Só queria ver padre Silvestre fardado de tenente.

— Que interesse tem ele em bancar o patriota? dizia Nogueira.

— Animal! resmungava Azevedo Gondim.

O Cruzeiro tinha perdido a subvenção.

Conversas assim, repetidas, distraíam-me. Uma vez por semana os dois jantavam comigo. E na cidade sujeitos exaltados começavam a espalhar que S. Bernardo era um ninho de reacionários.

— Como vai o fuzuê?

— Mal.

E lá vinham notícias de violências desnecessárias, vinganças, comissões de sindicâncias lavando roupa suja.

Nogueira, moderado, desejava um acordo entre vencedores e vencidos.

Gondim detestava acordos. Dente por dente, percebíamos? Dava-nos conselhos violentos, a mim, ao Nogueira, às árvores do pomar, e instigava-nos a uma contrarrevolução (quanto mais depressa melhor) que varresse do poder aquela cambada de parlapatões. Queria um governo enérgico, sim senhor, duro, sim senhor, mas sensato, um governo que trabalhasse, restabelecesse a ordem, a confiança do credor e a subvenção de cento e cinquenta mil-réis mensais ao Cruzeiro. Como íamos é que não podíamos continuar.

Atirava-nos palavrões encorpados que no jornal lhe serviam para tudo. São Paulo havia de se erguer, intrépido; em São Paulo ardia o fogo sagrado; de São Paulo, terra de bandeirantes, sairiam novas bandeiras para a conquista da liberdade postergada.

— Você fala bem, Gondim, murmurava eu impressionado. Você havia de trepar, Gondim, se o nosso partido não tivesse virado de pernas para o ar.

João Nogueira metia as botas na eleição e inculcava os conselhos técnicos. Gondim gostava do voto como de um filho pequeno e só admitia técnicos nas comissões da câmara.

Casimiro Lopes, afastado, escutava-os com assombro. Eu olhava a torre da igreja. E o meu pensamento estirava-se pela paisagem, encolhia-se, descia as escadas, ia ao jardim, ao pomar, entrava na sacristia.

João Nogueira condenava a literatura revolucionária, a patriotice alambicada.

O oratório, sobre a mesa, estava cheio de santos; na parede penduravam-se litografias; a porta dava pancadas no batente; apagava-se a vela, eu acendia outra e ficava com o fósforo entre os dedos até queimar-me. As casas dos moradores eram úmidas e frias. A família de mestre Caetano vivia num aperto que fazia dó. E o pobre do Marciano tão esbodegado, tão escavacado, tão por baixo!

Azevedo Gondim reclamava liberdade, aos gritos. Contenta-se com a renda mofina do jornal e deve os cabelos da cabeça. Conforma-se com isso. O que deseja é ver a gazeta de mangas arregaçadas, espumando, e no bilhar do Sousa, quando a carambola falha, insultar os políticos, umas toupeiras.

Agora a vela estava apagada. Era tarde. A porta gemia. O luar entrava pela janela. O nordeste espalhava folhas secas no chão. E eu já não ouvia os berros do Gondim.

São Bernardo (1934)Onde histórias criam vida. Descubra agora