Quando cheguei a cabine, toda trabalhada em seus tons de branco desbotado da nave e os tons pasteis que minha mãe usava em sua decoração, fui para o quarto me arrumar para a comemoração, já que não tinha muito o que fazer hoje. Graças a essa comemoração, todas as Alas de trabalho ficam fechadas, e eu não tinha a chave da Ala de Inteligência para dar uma de “abelhuda” nos feitos da Mesa de Liderança.
Ao sair do quarto, passei em frente ao quarto dos meus pais e parei de repente. Talvez essa seja a minha chance de descobrir alguma coisa. Com sorte teria algum documento, diário, qualquer coisa que possa dar uma luz. E assim, já me encontrei procurando documentos, diários, um computador.
Meus pais são muito organizados, tomei todo o cuidado para não tirar nenhum grampo de cabelo do lugar. Então encontrei um diário, que só pode ser da minha mãe, porque é todo feito à mão e de uma delicadeza perfeita. Mas para o meu azar, o diário é deste ano, não vai ajudar em nada, e também seria muita invasão de privacidade. Por que eu não pensei isso antes de vasculhar as coisas deles?
Estava saindo da cabine quando vi o computador do meu pai em cima do sofá. Se estiver ligado não vai ser tanta invasão de privacidade, né? Mas não estava. E minha saga de procura a sabe-se lá o que, que poderia ajudar a entender que movimento é este que está se organizando, chega ao fim.
As pessoas ainda estão se dirigindo as suas Alas especificas para ouvir o discurso dos Eleitos e comemorar com um bom vinho terrestre e comidas saborosas, pelo menos por uma vez. Me coloco neste meio de capas coloridas, cada cor com o devido símbolo da categoria e sigo para a Ala dos Primeiros, que é para os descendentes dos primeiros e dos mais importantes de sua Categoria, e claro a Mesa. E estou nesse meio, principalmente, porque os Curandeiros que fizeram história durante a partida, Monica e Gustavo Fleming, o casal mais poderoso que a linhagem de Curandeiros já viu, são meus ancestrais, por parte de mãe. O que não faz muita diferença, porque há tempos não temos Curandeiros com tamanho poder, ou capazes de Curar apenas com palavras, nem mesmo meus pais.
Me sento ao lado de Talia, que está com sua amiga Luna e suas seguidoras, e Vitor, que parece até um guarda costa de Luna, mesmo que sua capa marrom escuro nos indique que ela é a destemida aqui e que ele com sua capa cinza escuro seja um dualista.
- Ei, o dia foi muito produtivo hoje, acho que estamos chegando perto de encontrar um novo lar – Filipe chegou muito animado, esbanjando muito azul com sua capa, e se sentou na fileira de trás.
- Isso é ótimo, imagina só poder respirar ar puro? Seria incrível.
- Imagina só poder viver sem essas regras malucas e poder ter a família que desejar? – Seguro sua mão em meu ombro, entendendo completamente suas agonias.
As políticas do Vale podem ter mantido a todos vivos, mas isso não quer dizer que todos estejamos felizes com suas regras. Filipe Schlomo e eu somos amigos e confidentes desde sempre, e podemos confiar completamente um no outro para contar nossos segredos mais pecaminosos, segundo o Vale. E as agonias de Filipe têm tudo a ver com seus “pecados”, acho que a Mesa diria que Filipe “ama demais”, e segundo eles ama errado. É proibido em lei as relações homoafetivas, isso porque eles não poderiam reproduzir, e a raça humana precisa sobreviver. O que no mínimo é hipócrita, porque também existe uma lei que proíbe os casais de terem mais de dois filhos. Isso é muito mais do que política simples e pura, existe muito juízo de valor por trás dessas leis. Não me admira existirem grupos contra essas ideias.
Mas Filipe tem transferido suas preocupações para o trabalho, na Ala dos Gênios, a procura de um lugar novo, um novo lar, onde possamos mudar nossas leis e sermos felizes, ao invés de apenas sobreviver. Eu o admiro muito por tudo e sempre o apoio. Apoio tanto que sempre dou cobertura em suas escapadas noturnas.
Hoje seus cachos estavam bem úmidos, aposto que saiu do trabalho correndo para se arrumar, como sempre.
- Saiu tarde de novo?
- Correndo, achei que não fosse dar tempo. Mas eu não podia perder essa oportunidade, todas essas pessoas bebendo e festejando, é a oportunidade perfeita, não acha? – Filipe sempre me arrancava boas gargalhadas.
- Senhoras e Senhores, desejo uma boa noite a todas as categorias e sejam bem-vindos – começou minha mãe. – Hoje estamos reunidos para Comemorar o dia em que nossos ancestrais salvaram a raça humana – meu cérebro decidiu ignorar todo aquele discurso que todo ano é repetido.
Começo a mexer nos cachos de Talia, que estão extremamente grandes. Seu cabelo é mel como o dos nossos pais, assim como é branca igualmente, e seus olhos são verde escuro, como o do papai. Já eu sou o oposto, tirando os cachos, que são muito mais fechados, eles são preto e meus olhos são castanho escuro, e eu sou negra, não tenho a pele tão retinta mas ainda assim gostaria de saber o que aconteceu no processo da minha gestação, tudo bem que minha mãe poderia se considerar como parda, segundo os terráqueos, mas ainda assim é de se questionar. Sou completamente diferente dos meus pais, tirando os cachos da minha mãe, e minhas habilidades não dão o ar da graça. Eu sou estranha, só eu acho isso? Não, Luna também.
Aliás, os cabelos de Luna estão cada vez mais sedosos, gostaria de saber o truque, não que fosse ajudar, porque seus cabelos são lisos. Ao seu lado estava Vitor Engels, com seu cabelo raspado, acho que nunca o vi com o cabelo grande, mas posso apostar que é cacheado. E ele é negro, diferente de mim a pele é retinta, e pelo homem acima, é disparado o cara mais gato dessa nave. Minha análise não durou muito até que ele percebesse, e ele nem precisava me olhar para saber, por isso dizem que é o mais poderoso da sua Categoria, parece que entende muito mais do que só as pessoas, entende tudo ao seu redor. Já posso ver o seu sorriso soberbo surgindo, e agora seus olhos castanhos como uma tempestade terrestre. Ele arqueou uma sobrancelha e eu reviro os olhos. Se já não bastasse esbarrar com ele na Ala de Inteligência, graças a sua “incrível habilidade nunca antes encontrada”, ainda preciso estar nos mesmos lugares, por quê ele vive com Luna e essa, vive com Talia.
Finalmente a comemoração começa e eu decido circular pelo salão. Filipe já desapareceu, certeza que está em uma cabine acompanhado de um homem maravilhoso. Talia está conversando com as seguidoras da Luna, que eu nunca lembro os nomes.
Paro na mesa de bebidas, pego uma taça e aos poucos coloco o vinho, e começo a colocar mais devagar quando ouço três dos integrantes da Mesa conversando. Marcio Burke, o Dualista e mais conservador da Mesa, Pedro Core, o Destemido conhecido por não deixar vivo nenhum daqueles que já o enfrentou, eu particularmente o acho um louco, e Marcela Messias, essa então deve ser a Destemida mais controversa de todas, é a idealista da Lei de dois filhos, mas ela tem três, tudo bem que já estava gravida do terceiro filho quando pensou na lei, mas não importa, deveria ter sofrido alguma punição segundo sua própria lei, não necessariamente a morte como propõe, mas ela é a idealista né.
- Então os Gênios fizeram progresso? – perguntou, Pedro.
-Sim, parece que estão cada vez mais próximos de descobrir um lugar habitável – respondeu Marcela, que está a cada dia com a aparência mais velha.
- De qualquer forma, precisamos dar mais tempo a eles – disse Marcio.
- Como assim?
- Nossas condições estão piorando. A colheita rendeu metade do que na última remessa, o grupo da engenharia está fazendo suas contas, mas nosso oxigênio pode ter uma data muito curta para acabar. Isso pode virar um caos.
- E o que você propõe, racionamento?
- Proponho o que de fato pode nos dar mais tempo. Uma política mais rigorosa com os que infligirem a lei.
- Quando você propor isso a Mesa, terá meu apoio – falou entusiasmado, o louco do Pedro
Isso é um absurdo, eles querem exterminar aqueles que não têm valor para eles. Eu sei que já propuseram eliminar os doentes, mas isso não passou, na época, será que passaria agora? Vão matar os que roubarem remédios? Porque eles já são punidos. E o que mais esses doidos estão pensando? Estou tão atordoada que não percebo que a taça já está cheia até a boca. Vitor levanta a garrafa para não entornar. Nossos olhares se encontram, será que ele também ouviu? Sua cara não é das melhores, talvez tenha ouvido. Mas ele não diz nada, segue andando e deixa sua taça em qualquer mesa, parece meio inquieto.
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Pandora categoria 5
Science FictionViver numa nave espacial, porque no passado seu povo, a raça humana, não foi capaz de cuidar do seu maior tesouro, o planeta terra, era no mínimo revoltante. Mas as pessoas são adaptáveis. Tão adaptáveis, que no passado os governantes sabiam que se...