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2019

São Paulo


Encaro o mar, com o brilho dourado  do sol poente  de outono refletindo suavemente em suas ondas.

Um arrepio percorre minha espinha, sinto as borboletas alçarem voo em meu estômago enquanto sinto a brisa suave e o cheiro salgado da maresia. E então me envolvo em um transe melancólico e sinto minha mente se esvaziar de qualquer preocupação.

O mar sempre foi uma das coisas que mais me acalmavam.

Nunca soube colocar em palavras essa sensação, e nunca havia encontrado alguém que a compreendesse.

Era como se eu, a areia, o mar e o vento fôssemos uma coisa só. E me perguntava sempre se não éramos, já que somos feitos da mesma matéria.

A calmaria selvagem me dava impulso para viver e compreender inúmeras coisas sem pensar em uma única palavra. A natureza fala através do silêncio. Me sinto pequena, e isso, de alguma forma, me reconforta.

Mas, hoje, não consegui manter a mente vazia por muito tempo.

Pensei que dali alguns dias, não veria o mar por alguns meses.

Não veria minha família, nem meus amigos.

Nem Leo.

Ao pensar em seu nome, estremeci e deixei as lágrimas que havia segurado durante o caminho todo escorrerem livremente.

Me aproximei da água, deixando que ela tocasse meus pés. Me sentia exatamente como uma onda, entre momentos de extrema felicidade e uma tristeza imensa que quase me fazia desistir.

Engoli em seco, deixando a visão daquela golden hour me encher de coragem. Suspirei e fechei os olhos.

Talvez o que chamamos de amor não exista. Talvez seja um sentimento bem mais fraco. Talvez ele seja apenas cíclico, circunstancial, e serve a duas pessoas enquanto for cômodo.

Afinal, o amor não deveria exigir que você desista dos seus sonhos.

E deveria ser forte o suficiente para aguentar o peso de segui-los.

. . .

Passei o mais rápido possível pelo corredor do ônibus, sem coragem de encarar as pessoas com meus olhos inchados. Droga, justo hoje eu esqueci meus óculos escuros. Já era de se esperar, já que andava mais esquecida do que nunca.

Tirei meu cardigan da mochila e vesti, antes de colocar os fones de ouvido e me ajeitar no assento. Já estava escuro, e poucas pessoas saem de São Vicente para São Paulo naquele horário em plena quinta-feira. Minha mãe com certeza vai me matar. Ela odeia quando faço essas pequenas viagens sozinha.

O ônibus quase vazio deixava o clima mais solitário, aumentando meu aperto no peito. Naquele dia, a empolgação se esvaiu de mim e senti pela primeira vez o medo do desconhecido, a ansiedade, o término.

Eu vou realizar meu sonho de ir para a Inglaterra! Juntei dinheiro por tantos anos. Não era para eu estar tão triste na véspera de realizar um sonho tão importante...

Olhei para fora e vi meu suave reflexo no vidro. Mesmo que deixá-lo para trás me despedace, não irei desistir de algo que ansiei por tantos tempo. Talvez isso seja amor. Essa força que me move em direção a um lugar, que sempre me inquietou e me fez ter certeza que não nasci para criar raízes.


1886
Londres


- Kath? - Me virei num sobressalto quando ouvi meu nome. Annelise me olhava preocupada, enquanto segurava uma bandeja com o costumeiro chá de ervas. Deixei meus ombros caírem e esbocei um sorriso.

- Perdoe-me, Anne. Não vi que havia entrado.

- Pareces preocupada, querida. Chamei por ti três vezes, me ouviste apenas na terceira. Estava admirando a lua?

Olhei para o chão, tentando em vão segurar as lágrimas que emergiram. Anne sempre me desarmava e sua presença me fazia expressar os mais profundos sentimentos. Não sei o que seria de mim sem ela. Respirei fundo e a encarei; sua figura já estava embaçada pelas lágrimas.

- Ainda não sabes?

Ela balançou a cabeça negativamente. Mordi o lábio inferior. Falar sobre isto parecia tornar mais real. Respirei fundo, tentando não deixar minha voz estremecer.

- Querem que eu me case - Parei por um momento, recuperando o fôlego. - querem que eu me case com Raoul.

Anne me encarou por um breve momento, sem esboçar reação. Logo suas sobrancelhas se encontraram e ela apoiou a bandeja na penteadeira.

Kath... - Meu nome saiu em um sussurro, enquanto levava uma de suas mãos ao peito. Balançou a cabeça e me encarou com um olhar terno e preocupado. Nesse momento não consegui mais me conter e me entreguei às lágrimas e aos soluços presos em minha garganta. Anne me abraçou, e eu retribuí sentindo o conforto que apenas seu abraço me proporcionava.

- Kath... não podes recusar? Há tantos nobres que poderiam se encaixar nas exigências de sua família - Me afastei de Anne e sentei ao lado da penteadeira. Não tinha forças para ficar em pé.

Anne, é um acordo entre famílias. Irão se beneficiar muito disto. E, como é óbvio, minha opinião não conta! - Me virei e encarei meu reflexo no espelho. Estava horrível. Os olhos azuis estavam inchados e com enormes bolsas abaixo deles. Não comia bem desde que os rumores começaram a se espalhar; estava pálida e formava um enorme contraste entre a pele branca como leite e os longos cabelos pretos e cacheados que emolduram meu rosto. Olhei para todo o ouro que adornava meu espelho e me perguntei qual o significado de tudo aquilo. De que valia. As coisas que eu mais ansiava não podiam ser compradas.

- De qualquer maneira - Eu disse, encarando de forma vazia meu reflexo - seria difícil aceitar a ideia de me casar com qualquer pessoa. Quando penso em viver com alguém... - Um leve sorriso involuntário se formou em meus lábios, e pisquei para libertar algumas lágrimas presas em meus olhos. - Sabes em quem penso, não?

Anne me dirigiu um olhar atrevido, formando um sorriso no canto dos lábios.

- Tu sempre quis aquilo que é difícil, Katherine. Por vezes sinto que nasceste na família errada. Há tantas moças que trocariam de lugar contigo sem pensar duas vezes.

- Podes ter certeza que nasci! E sempre me inspiro em Mark Twain...

- Cuidado, não fales demais! Ainda estou lendo o príncipe e o plebeu... sabes como demoro.

- Eu sei, Anne. - Abri um sorriso que quase ninguém era capaz de arrancar de mim; ela era uma dessas raras pessoas. Vejo em Anne uma irmã, e me doía profundamente todas as normas sociais que me obrigavam a tratá-la desta forma apenas quando estávamos sozinhas. Sonhava com um mundo onde eu e uma mulher de pele escura pudéssemos ser livres, nunca impedidas por sermos mulheres ou por termos uma tez diferente. Desejava poder viajar e levá-la para tomar chá em Paris, rir sem preocupar-nos. Nesses momentos, esquecia que ela é uma empregada, e um enorme abismo chamado de preconceito racial nos separa; o que me machucava ainda mais quando a realidade tratava de me lembrar. Minha família, percebendo nossa amizade que começara na infância, começou a puni-la quando eu a tratava como uma irmã.

Penso que posso chamá-los de qualquer coisa, menos de família.

Ela suspirou e pegou a escova de cabelos em minha penteadeira. Ajeitei-me, sabendo o que estava por vir. Os momentos em que ela penteava e trançava meus cabelos eram tão reconfortantes... sempre o fazia quando eu estava triste, e sentia uma enorme paz com o toque suave de suas mãos e a escova macia a acariciar meus cabelos.

- Sabes o quanto gostaria que fôssemos livres, não sabes? Eu só queria ser livre para casar com o homem que amo e demonstrar afeto pela minha irmã de alma. Por vezes nos imagino assim, Anne. Nunca serei capaz de entender porque algo tão simples nos é privado.

Anne encarou meu reflexo, e pude ver as brilhantes lágrimas brotarem em seus olhos. Eu sabia que ela sentia o mesmo.

Vamos fazer nosso melhor, minha querida Kath. O amor, um dia, há de vencer.

A flower on the meadowWhere stories live. Discover now