Retrocedendo

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Eu não iria conseguir segui-los a pé, mas pelo o que escutei na conversa pelo rádio comunicador eles levariam a Jessy para um posto e lá a manteriam aprisionada até a manhã chegar. Haviam apenas três postos de combustível no centro, sendo um deles abandonado e desativado, local ideal para alguém como o Harry aprisionar alguém. Ele não havia especificado o tipo de posto em que iria prender a Jessy temporariamente, mas é óbvio que não usariam um posto de saúde como prisão, então provavelmente estavam falando de um posto de combustível.

Preciso chegar até lá e, pela madrugada, encontrar uma forma de entrar e resgatar a Jessy. Provavelmente eles estarão armados e não irão pensar duas vezes antes de atirar em mim, nesse caso preciso estar com algo em mãos.

Em casa tinha uma velha espingarda de meu falecido pai, mas eu não sabia manuseá-la bem, havia também um velho arco e flecha, esse sim era um objeto no qual eu tinha total domínio. Sendo o nosso bairro localizado no meio da mata, cabia a nós moradores aprender a caçar. Com 13 anos eu, em parceria com o velho Helder (meu pai), era responsável pelo sustento da família e a minha mãe cuidava dos afazeres de casa. Eu adorava caçar com ele, aprendi muita coisa e o arco e flecha sempre foi minha forma preferida de caçar. Fiquei muito animado quando meu pai me presenteou com um arco que ele próprio fez com madeira de marmeleiro, éramos bons companheiros da mata, era raro voltar da aventura sem ao menos 3 coelhos para fazer um ensopado. Sinto saudades dos momentos com meu pai. Infelizmente sua vida foi interrompida por uma picada de surucucu quando estávamos caçando. Por ironia do destino naquele dia havíamos combinado de nos separar para obter uma maior flexibilidade e não chamar muita atenção dos bichos. Ainda me lembro de ter pego um Javali, era pequeno e pesava no máximo 30 kg, era jovem ainda, mas era a caça que meu pai mais adorava. Quando um de nós conseguia capturar um javali ou algum outro animal maior já era o bastante para ficar alguns dias sem precisar caçar, então, amarrei o javali e segui arrastando-o à procura de meu pai para lhe contar a novidade, mas ao encontrá-lo, tive um grande choque. Sua pele pálida estava aparentemente fria, o corpo paralisado em uma posição de uma provável angústia sob o efeito do veneno e sua expressão facial era de dor e desespero. Eu tinha apenas 15 anos, corri desesperado, aos prantos em direção à minha casa, contei à minha mãe, que se desesperou e em alguns minutos todo o bairro já sabia do ocorrido, dois vizinhos levaram o corpo do meu pai para a Dona Lúcia ( ela era muito conceituada por ter salvo a vida de muitos dos moradores utilizando ervas, fabricava remédios caseiros e era, também, parteira ), ela logo soube que era uma picada de surucucu e tentou utilizar folhas de barbatimão com outros incrementos para anular o efeito do veneno, mas infelizmente já não havia mais nada que pudesse ser feito. A gente sempre se encontrava, no fim da caçada, debaixo da amendoeira onde víamos o pôr do sol. Depois que ele morreu, a caça não teve mais tanto sentido, em pouco tempo o comércio se instalou no bairro e já não era algo de extrema necessidade correr pela mata em busca de alimento, tudo poderia ser adquirido no comércio local em troca de favores ou alguns objetos. Eu ainda observo o pôr do sol todo fim de tarde mesmo sem, não mais, ter a presença de meu pai. Agora tenho a Jessy para me fazer companhia, ou pelo menos tinha.

Minha casa ficava a uns 15 minutos do centro pegando o atalho da trilha. Estava muito escuro, mas consegui chegar sem nenhum empecilho. Acho que a determinação me deu forças para encarar os perigos noturnos da mata sem nem se quer um pedaço de madeira em mãos para me defender se fosse preciso. Preciso evitar que minha mãe me veja, ela iria enlouquecer mais ainda ao saber o que de fato aconteceu. Eram 21:28 quando cheguei e minha mãe, por sorte, estava na casa vizinha, lá mora uma mulher viúva que geralmente fica com um turbante na cabeça e sempre usa vestidos longos. Não sei se isso é algum costume religioso ou algo assim, mas nunca a vi usar outro tipo de roupa além de vestido e turbante. Tiro conclusões precipitadas e crio uma teoria na minha mente que: Minha mãe deve ter tido um surto de preocupação, passou mal, a vizinha a ajudou e convidou-a para ficar lá até que Jessy e eu voltássemos. Entrei na casa sem ser notado e fui direto para o depósito de trecos, era assim que eu e Jessy chamávamos o quarto abandonado, ocupado somente por tralhas, lembranças e coisas antigas, localizado no fundo da casa. Demorei uns 20 segundos revirando caixotes e trecos até encontrar meu arco em meio à tanta coisa sem utilidade. Não sei o que motivou minha mãe a não vender ou trocar isso por alimento, talvez pelo fato de ser uma lembrança, algo feito pelas mãos do meu pai. A aljava estava um pouco mais á direita, ainda com 16 flechas ( algumas foram feitas pelo meu pai, já outras vieram junto com a própria aljava que adquiri no centro ).

Ao sair do depósito dei uma passada rápida no quarto que eu dividia com a Jessy e peguei uma mochila que costumo levar quando vou à pescaria com ela e no quarto da minha mãe encontrei uma lanterna de mão. Estava falhando algumas vezes, não sei se era a pilha que estava acabando ou se era algum mal-contato dentro dela, mas mesmo assim será útil e era a melhor que eu poderia arrumar naquele momento. Tudo certo, analisei a área, vi que não havia ninguém por perto e saí correndo em direção à mata, desta vez com meu arco e a aljava com flechas para usar se for necessário. Nunca matei alguém, mas se for preciso, pela Jessy eu o farei.

Já eram 21:54 quando cheguei no centro novamente. Preciso encontrar aquele posto e torcer para que minhas teorias estejam certas. Determinado, segui evitando ser visto pela Seloc que, agora em menor número, continua fazendo a vistoria e punindo quem tentar infligir as leis.

Jessy, estou chegando!

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