Mais velhos ingénuos

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Olá, querido Diário!

Se me estiveres a ouvir espero que tu estejas bem antes de tudo. Eu sou o.... deixa para lá não importa saberes quem sou, mesmo que isso te importe, lamento informar que nem eu mesmo sei quem sou.

Este é o Travesseiro, esta é a Cama, por cima da mesa são os gémeos siameses Telefone e o Auricular, aquele que me está a imitar é o Reflexo e tem o Mente que está dentro mim. Tenha muito cuidado com o Mente, ele é traiçoeiro, as vezes ele assume o controlo de mim.

Não acha loucura o que vou dizer a seguir. Se achares lembra-te que sou apenas uma criança e diga o mesmo que os demais dizem "é apenas uma criança, nada sabe sobre a vida".

Eles e agora tu também são os meu melhores amigos, espero que não penses que eu te esteja a usar, é que te achei ser a melhor coisa que posso usar para falar sem medo, dar o meu ponto de vista e o melhor de tudo, posso falar tudo o que sinto sem ter que ouvir o habitual "é apenas uma criança", acharem faltam de respeito pela mesma razão ou dizerem "é tudo mania dele".

Gostaria de falar com os mais velhos tudo o que te vou falar, mas eles estão nem aí para conversar sobre o meu estado emocional apenas sobre os meus comportamentos bizarros.

Não visível para a maioria

Desculpa a inconveniência por ter dito anteriormente que não me vou apresentar, a verdade é que até eu gostaria de saber quem sou, tudo que sei sobre mim mesmo é que sou apenas uma criança, sou apenas adolescente, sou apenas um jovem ingénuo, ou o que seja, que tem crescido numa sociedade modernista e aculturada - aculturação esta que absorvo das redes sociais, das músicas, das rádios, dos televisores, de todas as mídias que tenho acesso e viagens que faço.

O meu crescimento tem sido no meio de uma indústria de informação que produz conteúdos novos todos os dias, sendo parte do intuito formatar o meu comportamento e os meus desejos desde a infância, emitindo constantemente informações cheias de nada capazes de despertar o meu desejo de consumo por coisas banais, encarcerar a minha capacidade criativa e a capacidade de distinguir o certo do errado ou o desejar do precisar.

Os mais velhos não tiveram acesso a tudo isso na minha idade, pelo menos não a essa escala, não admira que sejamos tão diferentes em termos comportamentais e de visão de mundo. Diferente da época que estavam com a minha idade, nesse tempo existe uma elite contractada para formatar o meu comportamento produzindo conteúdos que me deixam emocionalmente fraco para me venderem momentos  temporários de felicidades em formatos de likes e mais likes para que eu esteja sempre conectado, deslizando o dedo num feed infinito enquanto enchem os seus bolsos.

Os likes ditam o meu nível de importância, quanto mais tenho mais amizades consigo obter, e  consequentemente, mais lindo e feliz posso dizer que sou, segundo os padrões sociais.

Ciente que a minha felicidade começa com "Iniciar sessão" e termina com "Terminar sessão", todo meu tempo empreendo nessas caixas electrónicas para que ela não termine, dentro delas eu posso ser, falar e fazer o que eu quiser, o mais importante é chamar atenção de alguma forma para que gostem de mim e fingir que sou feliz sendo o avatar que criei porque é isso que sou. De boca cheia digo que sou um mero avatar inventado por mim mesmo para agradar os outros.

Deves estar a pensar que é loucura minha continuar com tudo isso mesmo sabendo que estou, está, estão, estamos todos a fingir ser o que não somos e temos, mas que solução alternativa tenho eu se não há patamar para saber se eu sou bom ou mau, bonito ou feio, inteligente ou negligente além do número de seguidores – segundo Karnal.

Dizem que o analfabeto do século XXI não será aquele que não consegue ler e escrever, mas aquele que não consegue aprender, desaprender e reaprender. Concordo plenamente, mas no meu ponto de vista, querido Diário, o analfabeto do século XXI em diante será todo aquele que não se conectar a essa rede. A minha geração toda considera a minha tese mesmo sem saber porque todos sentem-se analfabetos quiçá menos humanos se não estiverem conectados, na moda ou dentro dos padrões sociais.

Presos nas banalidades

Nasci numa época que tudo tem, é estranho que mesmo tendo tudo sinto que nada tenho porque o essencial não é me dado, sou uma das vítimas da maior pandemia de todos os tempos a depressão. O facto de eu passar o dia com esses aparatos electrónicos sem manifestar algum problema remete aos mais velhos a ideia que está tudo bem comigo e que a minha educação está garantida sem a intervenção deles.

Esse pensamento deve-se ao facto deles deixaram-se levar pelas banalidades do mundo contemporâneo bebidas, novelas, ostentação, redes sociais, moda, etc. Estão nem aí para o tempo que passo preso nessas caixas de luz, como isso afecta-me emocionalmente e consequentemente o meu comportamento. Manifestam-se simplesmente quando algo de errado acontece, nunca procuram saber as razões, depois tudo volta ao "normal".

Em busca de um sorriso, enquanto jantamos tento começar uma conversa que haja participação de todo mundo, antes de começar dou uma olhada panorâmica para saber quem será o meu ponto de partida, mas ninguém vejo além de pessoas que aparentemente estão no mesmo lugar. Vejo pessoas distantes uma das outras mesmo estando juntas, vejo todo mundo concentrado nos seus ecrãs. Os únicos momentos que trocam palavras são quando aparece algo cómico que desperta a curiosidade dos demais - pois é, agora sabes a quem me inspiro, querido Diário.

Estou no meio da geração que não se farta de dizer «no meu tempo, no meu tempo» quando cometo algum erro, nunca procuram saber as razões que me fazem agir de uma determinada forma nem tão pouco me dão orientação adequada. No entanto, querem que eu me comporte tal como no tempo que sempre mencionam.

Eles desejam que eu seja igual a eles. Diz-me como? Se a maior parte das coisas que me influencia não tem eles como origem.

O que realmente preciso

Para que eu tenha uma educação de qualidade os meus superiores devem adaptar-se as novas tendências e focar-se na direcção em que a sociedade que pertenço está a caminhar para que sejam encontradas novas formas de educar com qualidade. Porém, é feito o contrário, oferecem resistência as mudanças que precisam ser feitas enquanto abraçam as banalidades, obrigam-me a ter o mesmo ponto de vista do tempo deles, obrigam-me a agir como o fulano que sempre me comparam o tal dito "inteligente e bem comportado", obrigam-me a ser o que eles querem ou o que não conseguiram ser.

O lema prático deles é "regras são regras, nada de negociações ou tréguas".

Propositadamente cometo erros para chamar atenção. Ingénuos como são respondem ao meu pedido dizendo «você já não ouve». Abandonam a minha educação deixando tudo nas mãos das babas, creches e escolas enquanto empreendem todo tempo em banalidades ou no trabalho, quando perdem o controlo das minhas acções pagam alguém para ouvir os meus lamentos os chamados psicólogos, que engraçado isso é, a minha solidão é comercializada.

A maior parte das vezes eles respondem o meu pedido de atenção com violência - método que julgam ser o mais eficaz para educar. Insisto nessa forma de chamar atenção, não que tenha gosto de apanhar, mas por ser o único jeito de tê-los por perto. Com o tempo o corpo irá se habituar a violência.

Chegará o tempo que irão se fartar de simplesmente bater ou prestar atenção aos meus erros. Quando isso acontecer eles vão querer conversar. Porém, não faço ideia se quando chegar o momento ainda terei vontade de falar ou cá estar. Digo isto porque tenho visto os meus amigos cujos pais não conversam também, acabam por buscar atenção na rua, alguns encontraram nas folhas de cannabis, bebidas e infelizmente outros encontraram com uma corda presa ao pescoço.

Os mais velhos desconhecem o seu nível de ingenuidade diante de uma criança. Tudo que sabem é ralhar, bater e ditar tal como foram educados.

Querem o melhor para mim sem o meu consentimento.

O diário de uma criança adultaOnde histórias criam vida. Descubra agora