II

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II

Lobisomens tinham medo de bruxaria. Como eram seres mágicos, capazes de se transformar completamente e à sua vontade em seus animais-guia, eles reconheciam a magia no próprio corpo e sabiam por experiência sobre sua relação com a mente e a verdadeira natureza da realidade. A capacidade de conduzir a magia, que, à diferença dos bruxos, não possuíam, era para os lobos um poder blasfemo e perigoso. Eles tinham superstições, preconceitos sobre os bruxos, e principalmente medo de serem alvo de seus encantos.

Lobos eram originários do sul e minoria no norte do continente, para onde apenas começavam a migrar. O resto da população nortenha era composta por duas espécies de humanos, sem diferenças facilmente visíveis, mas uma delas, assim como os lobos, possuía o segundo gênero – beta, alfa ou ômega. Bruxos eram pessoas desse segundo tipo que nasciam com raros poderes psíquicos – eram telecinéticos, telepatas, empatas, médiuns, ilusionistas – e estudavam feitiçaria. No norte, a bruxaria era regulada pelas cidades-Estado e fazia parte da vida das pessoas e da solução de seus problemas cotidianos. Os lobos relativamente recém-chegados ainda se adaptavam desconfiados àquela cultura.

TH, por sua vez, nasceu fora dos muros de Astrar, mas provavelmente seus pais, que não conheceu, vieram de Ida ou mesmo de Andrus, a cidade mítica dos lobos no extremo sul do continente. Foi criado entre outros lobos. Estranhos que conheceu como patrões e para quem trabalhou desde criança. Teve uma vida dura, sem afeto e segurança.

Só recente, após três anos viajando, ele começava a se sentir bem. Não dependia de outros, nada devia, ninguém podia lhe machucar sem que ele pudesse reagir e não precisava fazer o trabalho de que não gostava. Tinha uma condição de vida que lhe permitia até querer outras coisas, difíceis de alcançar, como cidadania, casa, família.

E agora, seu pior pesadelo, perder novamente a autonomia. Como na infância que ele preferia esquecer.

O sol já tinha girado, depois de viajarem a manhã inteira, quando finalmente alcançaram o desfiladeiro. Era uma estrada estreita e perigosa, o nome já indicava, mas tinha sombra abundante e eles poderiam continuar pela tarde sem exaurir os cavalos. TH ia devagar, na frente, em silêncio.

JK o observava sem sossego. Buscando mudanças, sinais de que os efeitos do feitiço passavam, ao menos provisoriamente. Estava tenso, preparado. A qualquer tempo podia dar uma nova ordem.

Depois de algumas horas atravessando o paredão de pedra e o abismo que se abria ao lado, TH começou a recuperar controle de si. Encontrar pouco a pouco respostas para sua condição, as quais buscava desde o primeiro momento. E elas vieram, uma por vez.

Era JK.

JK o enfeitiçara, perturbava sua cabeça para obrigá-lo a fazer o que queria.

JK era um bruxo.

Eles estavam atravessando o Deserto de Aquém pela passagem antiga. Estranha e perigosa. JK o obrigou a abandonar todos os bens.

JK podia bagunçar seus pensamentos a ponto de TH não reconhecer sua própria vontade.

Podia fazer qualquer coisa com ele.

E, por fim, lembrou-se perfeitamente. Você, TH, não vai me atacar, não vai me matar, não vai me machucar, nem me abandonar, me enganar, me recusar. Vai me levar onde eu preciso ir. Vai me proteger, me manter vivo, me defender com a própria vida se preciso for. Esse encanto vai durar até quando eu te libertar.

TH se desesperou e puxou as rédeas, fazendo o cavalo empinar de repente, provocando chuva detritos pela encosta e assustando o de JK.

Por alguns longos segundos, os dois ficaram imóveis, enquanto os cavalos se aquietavam, as pedras terminavam de cair e o perigo de morte passava.

Tempestade de AreiaOnde histórias criam vida. Descubra agora