Querido Jimin,
Hoje o churrasco que você fez no almoço estava meio ruim, torrado demais. O Hoseok sempre fala que você cozinha muito bem, porém carne assada não é o seu ponto forte. Felizmente, como nesse domingo você está sozinho, não tem muito problema, assim não tem toda a família para decepcionar com suas habilidades medíocres de assador de carne. De qualquer forma, melhor assim, menos chances de você ter problema do coração nos próximos anos. Churrasco faz mal pra saúde.
Você sabe como seus amigos te cobram pra se cuidar mais.
Você, caro amigo, como escritor, é um péssimo churrasqueiro.
Sabe Jimin, as vezes me questiono como tudo começou. Sei que combinei de começar do início, mas pensando bem, eu e Taehyung tivemos vários inícios. Em qual início devo começar a contar essa história? Talvez o início favorito dele não foi o mesmo que o meu. Essas coisas vivem mudando. Mas como a história é narrada por mim, vou começar com o meu início favorito: o glorioso dia de primeiro de maio. Ah, querido amigo, tanta coisa se desenrolou desde aquele dia. Os anos se passaram. Aconteceram tantas coisas. Quero lhe contar tudo, meu coração se aquece ao lembrar. Acho que essas cartas foram uma ótima ideia.
Estou então no abençoado dia de nosso senhor, primeiro de maio. Chovia tanto, tanto, tanto. Lembro que cheguei na faculdade amaldiçoando todos os deuses responsáveis por aquele maldito toró. Os corredores do prédio da Literatura estavam abafados com todo mundo usando gorros felpudos de lã, minha rinite estava atacada. Cheguei com os pés encharcados e tinha alguém cheirando a naftalina.
Encontrei minha edição linda de contos do Caio Fernando Abreu na hora na morte quando me encostei na parede do corredor e deslizei até sentar de pernas cruzadas, lamentando a umidade e aquele maldito cheiro de naftalina que ainda estava forte. Ironicamente, o conto que eu tinha selecionado para ler antes da aula de Teoria Literária II era Além do Ponto. Abri o livro pra ver o estrago que a chuva tinha feito.
Do nada, um trovão me deu um susto tão grande que dei um pulo. O cheiro de naftalina ficou mais forte e eu mais irritado. Ouvi uma risada baixinha. Olhei pro lado e tinha um par de olhos bonitos me olhando com um aspecto enxerido.
"Tremores, água de chuva e lama e conhaque batendo e continuava chovendo sem parar, mas eu não ia mais indo por dentro da chuva e..."
Sabe Jimin, eu não estava com muita paciência aquele dia. Você sabe muito bem que minha rinite me deixa assim. Achei ele um sabichão a primeira vista. Meio convencido, e ainda por cima fedia a naftalina. Quando ele abriu a boca pra falar perto de mim, ainda tinha bafo de cigarro! Não acreditei na hora. Quis mostrar pra ele quem era o maior conhecedor de Caio Fernando Abreu daquela universidade.
"E pelo meio da cidade," continuei num tom jocoso. "/Eu só estava parado naquela porta fazia muito tempo, depois do ponto, tão escuro agora que eu não conseguiria nunca mais encontrar o caminho de volta."
Ele abriu um sorriso tão bonito na hora, assim meio quadrado. Por um momento me fez até gostar de formas geométricas, me fez desejar aprender matemática de novo pra poder falar que os ângulos do sorriso quadrado dele combinavam perfeitamente naquela cara bonita. Ele se apresentou como Taehyung. Me apresentei como Jimin. Estiquei minha mão e ele apertou forte com as mãos com luvas laranjas cortadas nos dedinhos.
Ele era tão bonito, Jimin. Tão bonito.
Perguntei pra ele se ele gostava de Caio Fernando Abreu.
"Não, mas eu gosto de decorar trechos de contos que eu odeio," ele respondeu.
Dessa vez, além de um sorriso quadrado, ganhei uma risada quadrada. Eu queria de duas opções, uma: estrangular aquele pseudo-intelectual decorador de contos engraçadinho ou ser amigo dele para sempre. Às vezes me questiono o que teria sido da minha vida se eu não tivesse escolhido a segunda opção.
Logo percebi que a risada dele era gentil demais para zombar de mim. Ele não estava rindo de mim, ele estava rindo comigo. Trocamos mais algumas palavras curtas sobre a chuva e a pena que sentíamos do personagem do conto, por estar molhado na chuva e ter perdido uma garrafa de conhaque. Não estávamos muito diferentes dele, no fim das contas, só faltava a garrafa de conhaque. Tentei bolar uma frase engraçadinha pra chamar ele pra tomar umas depois da aula mas a professora Patrícia chegou na hora e ele se levantou rápido para ajudar ela com o retroprojetor e a pasta de transparências. Gentleman.
Naquele momento, enquanto o cheiro forte de naftalina e o bafo de cigarro ainda impregnavam minhas narinas, percebi que nunca tinha conhecido uma pessoa que gritava tanta coisa em silêncio. O cheiro nem me irritava mais. Aquele menino tinha alguma coisa ao redor dele.
Naquele momento passei a gostar de geometria, dias chuvosos e conhaque. Havíamos trocado meia dúzia de palavras e eu já tinha mil perguntas pra fazer a ele. Algumas ele me respondeu ao longo do tempo, outras ainda tenho dúvida. Mas não vou me adiantar. Vou tomar mais uma xícara de café antes de continuar a contar sobre aquele primeiro de maio.
Até logo. Com carinho,
Jimin.
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Papoula
FanfictionLembra do olhar do Taehyung, Jimin. Começa por ai. Começa por aquela pétala de papoula vermelha, primeira flor que escapuliu do seu pulmão quando esse mesmo menino bonito segurou sua mão pela primeira vez. Você sabe como essa história terminou, o mu...