O vício da minha carne

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Era simplesmente impressionante como tudo acontecia na vida daquele mero rapaz, alto, jovem e estudioso. Meu Deus! Tão cauteloso, calmo, como se cada uma de suas ações fossem perfeitamente racionalizadas antes de qualquer decisão, andava devagar, sempre, a rapidez do mundo moderno que tanto condenava era impenetrável no seu sistema nervoso.
Em seus braços, carregava livros dos autores mais cultos, a teologia mais bem fundamentada e tradicional, isso! Tradição, essa era a palavra que ele ficava repetindo para si mesmo, ele tentava friamente ao mesmo tempo, de uma maneira tão apaixonada, ser uma pessoa correta.
Ensinava para os outros com uma retórica impressionantemente boa, era até assustador a maneira de como ele conseguia convencer a plateia, de que concordar com as suas ideias era o mínimo que qualquer ser civilizado. Quem discordaria? Um primata? Um animal? Pior! Um degenerado.
Essa era a "palavrinha mágica" que arregalava os olhos dos estudantes que o seguiam cegamente.
Depois do trabalho, pegava o seu carro e saia dirigindo para o seu destino inevitável: a cama.
As ruas escuras com os postes de luz refletindo a sua luz no painel do seu carro e o som das pessoas na rua não conseguiam fazer com que uma voz que sussurrava na sua cabeça o seu nome
"Alice"
"A" como se o começo de seu nome já fosse um suspiro de satisfação. "Li" que fazia a sua língua encostar no céu da boca já que a dela não estava ali. "ce." quase soando como um "sim", "sim, mulher, essa é a única resposta que minha boca pode pronunciar quando está perto de você"
Um sorriso largo já se esparramava pelo seu rosto.
Era de fato um escravo de seu corpo. Seu simples olhar reparando no vento que balançava as cortinas já era mais que o suficiente para fazer com que ele quisesse ela por completo, do jeito mais vulnerável possível. Não havia nada que o fizesse resistir ao corpo da moça.
O amor e o desejo dele não mudavam o fato de que Alice era pagã e que os dois ficavam às escondidas, já que por ambas as famílias, assumir um compromisso seria impossível.
Sim, era pecado para os dois, era condenável, era inadmissível, era absurdamente fora do roteiro que deveriam seguir, mas era isto, desde a adolescência sempre fora dessa forma. Corretos para o mundo, entretanto, quando eram apenas os dois, a noite e o maldito vento que fazia ela olhar para as cortinas, o que acontecia ali era a demonstração mais crua do que os dois sempre apelidaram carinhosamente de "degeneração".
Ele tentava de todos os jeitos tentar parar de se deitar com a moça, pois, sabia muito bem que o que lhe aguardava era o fogo, não dela, mas sim da fúria do seu Criador que se enoja com tamanha hipocrisia que ele transpirava em cada segundo de sua tão pobre existência.
Orava, jejuava, implorava até que as suas cordas vocais ficassem fracas que parasse de ter desejos por aquela mulher, mas nada daquilo adiantava, ele acabava nu e junto dela da mesma forma e às vezes até mais intensamente.
Um dia, ele se cansou.
Pegou o carro e dirigiu nas ruas da mesma forma, sua mente repetia novamente
"A"
"li"
"ce".
Respirou fundo e bateu na porta daquela mulher que dominava cada centímetro de seu corpo, seu desejo e de seu coração.
Da mesma mulher que fazia ele sentir a melhor sensação que sua carne podia dá-lo e, ao mesmo tempo, a culpa que apertava o seu peito até que lágrimas saíssem de seus olhos e molhassem o seu travesseiro pela milésima vez.
Ela abriu a porta e ele imediatamente baixou o seu olhar para chão, pois, sabia que seria tão fatal quanto um tiro na sua cabeça.
Carregava hoje nos braços não só livros, mas também uma faca que cortou o pescoço de sua mulher.
Ela caiu e sangrou no chão de olhos abertos que pareciam encarar até o último escombro de sua alma, os segundos que precederam a sua partida foram dedicados aquele homem nunca a amou.
O olhar triste e repulsivo de sua mulher fez com que o seu coração que já batia em uma frequência muito acima que qualquer maratona poderia causar explodisse por fim as suas artérias. Caiu do seu lado sem vida, assassinado por aquele mesmo olhar que o dava vida.
"Ninguém nunca ousaria chamar isso de amor, maldito! Você nunca a amou, nem mesmo por um segundo que seja, para você ela nunca foi "Alice", nunca foi um ser humano, nunca foi uma mulher, ela sempre foi apenas um pedaço de carne que o dava prazer e te afastava da salvação da vida eterna, mas nunca a mereceu e nem se fosse o mais santo de todos mereceria.
Morre engasgado com as suas próprias palavras mágicas.
Incivilizado, primata, animal...
Degenerado."

Diria ele, se olhasse para sua própria miséria.

Incalculáveis - ContosWhere stories live. Discover now