Olhos Fixos

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A van balançava o seu corpo fazendo seu cabelo castanho e liso bagunçar, as armas e as granadas faziam um barulho quase ritmado que lembrava um sambinha lento e sussurrado, que as pessoas apelidaram de "bossa nova", passou a língua nos seus lábios secos pelo frio e se lembrou da boca dele, filho de um general militar, encostando na dela nos finais de tarde em que sua mãe não estava em casa.

Sorriu, soltando uma risada leve.

— Em quem você tanto pensa?, perguntou a sua mãe franzindo a sobrancelha.

A menina fechou a cara e desviou seu olhar para janela. Ela e a mãe faziam parte de um grupo terrorista revolucionário que cometia atos assombrosos na ditadura militar brasileira. Ela participava não porque tinha realmente o desejo de se envolver com esse tipo de coisa, e sim pois a sua família foi a envolvendo naquele ninho ideológico desde muito cedo, e quando viu estava vendo um soldado qualquer morrendo na sua frente na mesma frequência que lavava o seu rosto, o que se repetia muito, já que explodir bancos e lidar com a poeira era algo recorrente em sua vida.

O mais inesperado de tudo foi o momento, em que num bar no meio da capital paulista, enquanto puxava a fumaça de um cigarro não muito confiável para dentro de seu pulmão, que a essa altura era ligeiramente mais claro que sua jaqueta marrom, viu um menino alto, magro e com os cabelos negros passar o seu olhar em seu rosto.

Muito antes de descobrirem que eram de lados totalmente diferentes, já confundiam seus ares e suas pernas no banheiro do recinto, soltando sorrisos e suspiros enquanto se enroscavam um no outro, saíram de lá e passaram horas conversando na praça a respeito de livros que os dois gostavam e filmes cujos diretores fizeram um trabalho tão porco que mereciam ser fuzilados em praça pública. Suas vozes se combinavam tanto que faziam uma doce sinfonia ao mundo, era um daqueles momentos em que não se sente o tempo passar.

O rapaz voltou para sua casa com um sorriso tão grande no rosto, dizendo boa tarde até para as moscas que visitavam irritantemente seu pão com queijo e mortadela. Seu pai irritado pisava forte no chão assustando o rapaz

— vagabundas! disse ele, soltando as fotos de dois caras, uma mulher de meia idade e a mulher que o filho se apaixonara há alguns minutos.

—Mas o que é isso? Eles fazem o que? Qual é problema? exclamou ele, enquanto seu ar faltava mesmo respirando fundo.

—Terroristas, revolucionários, malditos comunistas! Estão planejando atacar um museu ainda nessa semana, estamos investigando. Respondeu o pai quase gritando para o filho.

O rapaz foi para o seu quarto ofegante e soltou várias lágrimas de desespero de seus olhos. Sua cabeça dava voltas tentando achar uma forma de resolver aquele conflito interno.

Parece impressionante o fato que aquela vagabunda, terrorista e comunista tinha sido a primeira pessoa que o fez sentir daquela maneira. Sempre era tratado de uma maneira diferente por ser filho de um general, mas dessa vez, ela o olhou com um olhar tão leve e carinhoso, que repousava tão suavemente em seus lábios... Falando neles, como poderia esquecer aquele beijo e aquelas unhas curtas arranhando seu pescoço, pareciam tirar aquela camada de antipatia que talvez envolvesse toda a sua pele. A sua voz doce dizendo coisas tão interessantemente impressionantes encantando a sua alma...

— Dane-se

Declarou ele sabendo que nunca mais seria o mesmo depois de acomodar o seu olhar sobre a face mais bonita que tinha visto.

A partir daquele dia, os dois nunca mais se separaram.

Era sempre escondido, mas isso não era um problema, a mãe da menina saía, ele entrava. Foram se conhecendo mais, e a paixão dos dois crescia a cada instante, ele dava a desculpa de que iria andar de bicicleta para o seu pai, mas as únicas estradas que ele passeava eram as curvas dela.

Incalculáveis - ContosWhere stories live. Discover now