Capítulo 2 - Kai

177 61 61
                                    

Tanta coisa havia acontecido no dia de ontem, que ainda sentia como se minha cabeça estivesse presa em um pesadelo. O que era só para ser mais uma festa entediante, se tornou um dos dias mais terríveis que eu tinha tido até hoje, e apenas não conseguia me concentrar em nada além dos meus pensamentos, e da sensação que eu estava esquecendo de alguma coisa.

- Alô! Anuê para Kai, responda sereia! - disse Éden tentando chamar minha atenção pela milésima vez naquela manhã.

- Já disse para não me chamar assim. - eu disse com a voz baixa sem tirar os olhos da janela. Eu ligava tanto para aquela monitoria que tinha deixado a mesa antes de começarmos e me sentado no para peito da janela.

Do lado de fora eu podia sentir as árvores que nos rodeiam ficando agitadas, como se pressentisse o que estava por vir. Ou eu é quem estava pressentindo.

- Então se concentra, preciso te lembrar de que se você não se sair melhor nisso vai ficar presa a mim por mais tempo? - ele disse quase soando tão contrariado quanto eu.

Caminhei de volta até a mesa e me sentei na cadeira em frente a Eden. Ele empurrou o livro na minha direção, agora evitando olhar diretamente nos meus olhos, como todos que não queriam ser encantados faziam. Era extremamente irritante, eu não tinha como saber se um garoto estava sendo gentil comigo ou se era somente essa coisa de sereia.

O encanto funcionava como um imã, qualquer homem que olhasse nos meus olhos por tempo suficiente era atraído para mim. Zarak costumava dizer que a minha atração era ligeiramente mais leve do que as outras sereias que ele conheceu, e que isso se devia ao meu lado paterno, ou meu lado ninfa. Ainda assim, os garotos evitavam olhar para mim por muito tempo, eu os instrui desta forma, para que eles não sofressem o encanto e eu não tivesse que lidar com um monte de adolescente babão. Com os humanos era muito pior, eles não precisavam de muito para acabar atrás de mim, por este motivo que eu raramente podia sair da escola. Era perigoso para todos os outros que os humanos soubessem sobre a minha existência.

- Então, - eu disse olhando para o livro e tentando disfarçar o enorme ponto de interrogação na minha testa - você estava explicando sobre escamas né?

Éden cruzou os braços em frente ao peito visivelmente irritado. Talvez porque ele estava a meia hora falando sobre aquele assunto e eu não tenha ouvido uma palavra sequer.

- Eu não sei, me diz você! Você é a sereia aqui, não to vendo nenhuma outra encantadora sereia neste recinto.

- Eu não devia ser obrigada a saber disso se eu não quisesse. - retruquei.

- Você é a única aqui que deve saber tudo isso - ele disse dando muita ênfase na palavra "deve". - Você vai se tornar uma sereia mais cedo ou mais tarde.

- Eu não quero me tornar uma sereia! - as palavras saíram mais altas do que eu pretendia. Sem que me desse conta, eu tinha levantado da cadeira e estava apoiada sobre a mesa com as mãos fechadas em punho.

Éden tinha ido levemente para trás, com os olhos arregalados. Em todos os meus 16 anos essa era a primeira vez que alguém se afastava de mim ao invés de se aproximar, e ao olhar em volta eu pude ver que os vasos de plantas da sala estavam com todas as suas folhas viradas na minha direção.

- Me desculpe! - Éden falou com os olhos arregalados, provavelmente ele nunca tivesse me visto tão fora de controle, e ele era a pessoa com quem eu mais me descontrolava por aqui.

- Éden, será que pode nos deixar a sós por um momento? - disse Singe parada na porta da sala. Eu não tinha a visto chegar, não fazia ideia do quanto ela tinha ouvido.

- Salva pelo gongo sereia. - ele disse sem sequer dirigir o olhar para mim, apenas se levantou me deixando sozinha naquela sala com Singe e diversos livros assustadores de sereias.

As crônicas de Anuê - Os filhos da LuzOnde histórias criam vida. Descubra agora