1 - Orgulho e Punição

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Na melhor das circunstâncias, no melhor dos dias e nos meus melhores momentos muito provavelmente eu me livraria de toda preguiça, acordaria cedo e, organizadamente, faria todas as minhas obrigações... Mas não hoje.

Merda. Justo hoje.

São tantas razões que me fizeram perder por completo o prazo para fazer esse trabalho que chega a ser difícil listar, mas farei assim mesmo: minha irmã e minha mãe entrando ao mesmo tempo no período menstrual — sim, elas foram abençoadas com um ciclo idêntico, então quando chegava fim de mês nossa casa se tornava insustentável de tantos hormônios, cólica e chocolate; some a isso o fato de que eram meus primeiros dias na escola desde meu autonomeado "surto de fim de ano", quando, no meio de uma tempestade assustadora que tomou nossa cidade naquele dia acabei tendo uma crise extensa de pânico, recordando de coisas que tentava, inutilmente, deixar no passado — como na pior noite da minha vida, quando, num momento, meu irmão estava lá, são e salvo, e no outro estava sem vida, afogado num rio gelado, com o corpo branco e cheio de veia, tendo a mim como única e principal testemunha do acidente.

Não bastasse toda essa merda, ainda estava naquela fase que todo jovem começava a se questionar no mundo. Meus dias se tornaram incógnitas constantes, cujo único objetivo era tentar entender minha identidade, descobrir quem eu era — após ter me perdido e me transmutado por completo naquela noite fatídica. A pior parte de tudo isso? Eu não me lembrava de mais nada além do cadáver dele, os trovões colossais retumbando no céu negro e denso, e a chuva gélida cobrindo meu corpo como uma torrente de lágrimas insossas. Depois do acidente adquiri uma dificuldade dissociativa que consistia, basicamente, em não conseguir me lembrar por completo de tudo e todos que atravessavam meu caminho. As memórias do meu irmão quase todas foram... perdidas, menos aquela, aquela dolorosa, assustadora e cinzenta — literalmente. Talvez por isso eu não tenha chorado no seu enterro. Não conseguia sequer ficar triste. Ele havia se tornado um estranho pra mim, tão rápido quanto passou de vivo para morto.

Que boa história não começa com um trauma, um plágio e uma série de problemas mentais catastróficos que seriam resolvidos com uma boa dose de terapia?

Eu ainda tenho medo de chuvas, mas não tenho lembranças claras. Talvez por isso eu não tenha feito aquela atividade de literatura idiota, por ter ficado encolhido no meu quarto, debaixo da cama, em posição fetal, chorando por algo que não conseguia entender por completo, enquanto raios, trovões e tempestade cobriam a cidade noturna.

Mas ainda precisava entregar um trabalho, que já devia estar pronto há muito tempo atrás. Então fiz o que qualquer garoto de dezessete anos, mais preocupado em encontrar o sentido da vida do que encontrar o sentido da vida faria: liguei o computador, acessei a internet e copiei descaradamente a primeira redação literária que encontrei: Orgulho & Preconceito, parecia um excelente começo... e ninguém descobriria...

Pelo menos eu achava.

Mas é óbvio que descobririam. É óbvio. Como eu posso ser tão estúpido?

Na segunda fui chamado na sala da professora de português, Érica. Ela definitivamente não estava contente em me ver. Os olhos pesados, sob os óculos redondos de armação vermelha, que contrastavam lindamente com a pele escura e sedosa, e os cabelos volumosos farfalhando pela brisa que atravessava a janela como os cabelos de uma musa, não podiam apagar o desgosto estampado em sua expressão.

— Não vou escolher palavras, Eli, você sabe porque eu te chamei aqui — ela disse, por fim, sem nenhuma amabilidade. Engoli seco, levemente inclinado a procurar um caminho de fuga para o mais longe possível... Mas a sala estava trancada (O que me fez pensar que ela pensou nessa possibilidade antes de mim, esperta).

Orgulho, Preconceito e ArrogânciaOnde histórias criam vida. Descubra agora