A pedrada no meu peito não foi lá muito simpática, os meus nervos levantaram-se, mas as minhas forças não permitiram que eu defendesse aquele território que era meu. Tive de correr e navegar por essas ruelas escuras a procura de um porto seguro, segui o caminho à luz de pirilampos, vi o clarão no negrume, e sei que Deus não nos abandona - a lua foi uma prova de sua misericórdia.
Ele não deu tempo para explicações, se o fizesse saberia que eu queria apenas partilhar o lugar, mas mostrou-se muito alterado para qualquer espaço de conversa, nunca corri tanto em toda minha vida, eu parecia um desses atletas, nem os meus 60 anos impediram tal velocidade, eu corria, e corria, o coração batia, e batia. - Incrível! - Ainda batia mais forte que nunca, nunca me senti tão vivo e isso me assustava, pensei que tal aventura me levasse à morte, mas foi apenas um desmaio.
Morrer seria muito melhor, não sei como meu peito aguentou, pelo que sei é o ponto mais fraco do meu corpo, pelos amofines nos últimos tempos; se Deus me levasse seria uma alegria, assim eu descansaria, e a espera pelo grande mestre seria por menos tempo, pois para os mortos não existe cronologia. Mas sei lá, talvez no fundo eu quisesse viver só mais um pouco, deve ser por isso que no ano passado fui ao médico, no hospital provincial, nunca antes vi tanta moldura humana enferme, foi estranho um rapaz ao meu lado morrer com os dedos no nariz, foi ainda mais estranho o jeito que ele olhou para mim antes de morrer, desatei-me do olhar e conduzi-o a uma senhora que estava gritando feita louca, na verdade todos olhavam para ela, enquanto saltitava e gritava:
- Meu filho eh! Meu filho eh! - o seu filho já não o podia ouvir, pois estava morto. Eram choros por todo lado, choras por lá, choros pra cá, pessoas saindo com seus familiares mortos e outros morrendo bem na porta do hospital. O hospital provincial da Lunda-sul revelou-se assim como a oficina da morte, fica-nos difícil saber se foi por causa das doenças ou do mau tratamento delas; algo superior às mortes foi sem dúvida a incompetência que se avistava da parte das enfermeiras, ou do governo que era a quem as enfermeiras atribuíam a culpa - não sei! - Sei unicamente que estava tudo mal e para piorar havia um único médico no hospital para casos de medicina interna.
Veio uma enfermeira acalmar os ânimos, ela era a representação mais básica das enfermeiras em Angola; forte e media, tinha uma barriga que não lhe permitia fechar se quer um botão da bata. Tinha o que quase todas têm certa arrogância no atendimento, parece que o cansaço lhes rompia o juízo, mas... Entende-se. É muita demanda e poucos serviços, e é claro e evidente, que se precisa de mais profissionais de saúde. Meus pés cansados agradeceram quando a enfermeira chamou por mim. Notei a pressa ao atenderem-me desde a recepção até ao médico, o mesmo desviava o rosto sempre que eu abria a boca, tentando esconder o óbvio, sabia eu mais do que ninguém o que se passava e ele ainda mantendo a gentileza e o profissionalismo, mas qualquer um perde essas qualidades diante daquele tortuoso aroma, aroma de um homem, que a muito adia o seu corpo ao tão necessário encontro com o líquido precioso (afinal a pressa foi só comigo), esse que só tem servido para matar a sede, a sede que é um caso urgente e necessário, se não matarmos ela, ela mata-nos a nós; Já as outras atividades as tenho dispensado, se calhar porque não influenciam na minha existência, na verdade quando se passa fome e sede, tomar banho é o que menos preocupa.
Expliquei-lhe o problema, o afastar dos lábios condenavam a existência de vários dentes amarelos, com alguns ainda insistindo no branco, um arco-íris em uma boca incompleta, creio que o médico sentiu que eu estava na consulta errada, tudo indicava que eu precisava mais de um dentista, mas não deixou de focar-se naquilo que eu o apresentei como problema. Depois de medir a pressão arterial, pôs no meu peito o necessário para ouvir os batimentos do meu coração, e de seguida disse:
- Vai fazer uma análise radiológica e depois regressa para vermos como está o peito do senhor - Falava enquanto direcionava constantemente o seu nariz aos ombros, eu percebi que o meu cheiro o incomodava e evitei abrir muito a boca.
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LENDA URBANA
Short StoryEsta é uma coletânea de contos, que acredito eu ter conceitos essenciais para a vida. Quanto ao título não é a condicional das temáticas dos contos e sim um manifestar de um desejo do autor. Ou seja, não é o que os contos são, mas o que eles irão de...