E lá estávamos nós na aula de Literatura, onde a maioria dos alunos dormiam ou ouviam música. E lá estava você, três cadeiras à frente, duas fileiras ao lado, incluída no seleto grupo de alunos que realmente prestavam atenção. E havia eu, que não conseguia me concentrar em mais nada que não fosse você. Seus cabelos ruivos que escapavam teimosamente do gorro preto. A forma com que chupava a ponta do lápis quando estava pensando. Os olhos verdes de caleidoscópio que eu tive poucas chances de admirar, mas já estavam gravados na minha cabeça com marcador permanente, que silenciosamente mergulhavam na filosofia de Kafka como não fosse nada de mais. Seus dedos que batucavam nervosamente na mesa e a perna que batia em um ritmo compassado e rápido sem que você nem percebesse. Você parecia genuínamente interessada no que a voz monótona da professora dizia sobre coisas irritantes que eu não me interessava em saber.
Meu olhar desce pela sua camisa rosa-claro até sua saia curta branca que cobria pouco das pernas, deixando que minha imaginação corresse solta. Eu volto a observar seu rosto e você me encara pelo canto dos olhos antes de continuar a olhar o quadro. Você sentia meus olhos por seu corpo e eu sorrio vendo-te corar de leve. No começo eu não compreendia o porquê de você sempre chegar com saias e shorts curtos, mesmo sabendo de todos os olhares maliciosos que receberia. Mas após alguns dias eu percebi que seu objetivo era provocar uma pessoa específica. Ah, Raposinha má. Raposinha muito má.
Um sorriso escapa pelo meu rosto enquanto meus desejos de estar em uma aula de ciências preenchem minha mente; obviamente não por ser uma matéria interessante, mas por ser a classe onde sentávamos lado a lado e eu podia deslizar os dedos suavemente pelas suas pernas até que você sussurrasse para mim pedindo por favor, Daphine, eu estou tentando me concentrar.
—Srta. Lestrange?
Pisco, escapando dos meus pensamentos e olhando em volta. 30 pares de olhos me encaravam, incluindo os da professora. Todos as cabeças estavam voltadas para mim, menos a sua, que observava a parede com interesse. Pelo modo com que evitava me encarar, eu concluí que você sabia por onde minha imaginação vagava. Um sorriso idiota se espalhou pelo meu rosto antes que eu me virasse para examinar a professora baixinha de óculos redondos. Ela estava de braços cruzados e sobrancelhas franzidas, provavelmente esperando uma resposta.
—E-eu..ele fez uma história muito boa, na verdade. Eu adoro aquela parte em que...ele enfrenta seus medos...e mata a aranha na parede.Toda a sala gargalha, menos você e a Sra. Mirthy. Eu sinto minhas bochechas esquentarem enquanto assisto a professora voltar para a aula, suspirando, tentando conter o caos que havia se instalado. Faltavam 17 minutos para a liberdade. A cada segundo eu ficava mais agitada, intercalando os olhares entre a janela, o relógio, você e a porta.
Aqueles 17 minutos pareceram durar uma eternidade, mas finalmente o sinal do fim da aula toca, e aquele som nunca soou tão doce aos meus ouvidos. Eu me levanto com um movimento rápido, um segundo antes dos outros alunos se levantarem, murmurando algo. Enquanto os zumbis se retiravam da sala em uma massa adolescente cansada e animada para a luz do sol, a professora dizia algo sobre uma redação para dali a quatro dias, informação vagamente processada, pois meu foco estava em uma única coisa: a garota agitada de olhos verdes parada ao lado da porta, tentando não transparecer que me procurava pela aglomeração. Um sorriso se espalha pelo meu rosto e eu caminho na sua direção rapidamente, sentindo meu estômago queimar.
Nós fazemos contato visual por um microssegundo antes de nos misturarmos ao nosso abrigo mais secreto: as pessoas. Ninguém perceberia duas garotas de mãos dadas na confusão caótica que eram dezenas de jovens ansiosos para sair do inferno escolar. Nós estávamos completamente escondidas do mundo, exatamente no centro dele.
Você sorri para mim, enquanto andávamos em um ritmo mais lento do que o resto das pessoas, mas ainda assim sem ficarmos para trás. Como a algazarra animada misturava vozes difusas e gritaria, nós tínhamos uma boa desculpa para conversar com as cabeças próximas, talvez um pouco mais do que o necessário. Você falava por nós duas, contando sobre seu dia, quando foi ao mercadinho às 5 da manhã para comprar coisas antes de todo mundo, o que acabou em uma briga com uma velhinha pela última barra de chocolate com menta, e você sabe que se fosse qualquer outra coisa eu cederia, Daphine, mas meu chocolate com menta é intocável.
No momento, o significado das palavras que você dizia era apenas minimamente entendido, pois eu focava mais no som da sua voz, na cor e no brilho dos seus olhos, no cheiro que você exalava, tentando memorizar você; adicionando mais detalhes ao rosto que eu via todas as noites antes de cair no sono, se não aparecesse nos meus sonhos também. Eu poderia facilmente me perder no labirinto caleidoscópico das cores que habitavam nos seus olhos. Ou talvez me entregar ao sono sentindo seu cheiro de jasmin. Talvez quem sabe viver assistindo tua risada e ouvindo teu sorriso. Coisas tão preciosas para mim. Tão únicas. Tão...você.
A massa de jovens se dissipa e nós nos separamos, como todos os dias, você vai para um lado e eu vou para o outro, você vai saltitando e eu paro um pouco para te assistir sumir pela calçada com a energia de uma criança e um espírito de uma ninfa, uma combinação que inesperadamente me faz perder o ar todos os dias e desejar desesperadamente 30 minutos com você. Ali, assistindo você ir embora, tudo que eu queria era pedir seu número, que mesmo depois de tanto tempo de convivência eu ainda não tinha, pelo simples medo da remota possibilidade de nos descobrirem. Não entendíamos exatamente do que ou de quem tínhamos esse medo, mas não queríamos nos arriscar. Mas uma voz dentro de mim dizia algo como "vai logo, idiota. Vai atrás dela". Ou algo assim. Eu estava hesitante. Eu deixei você ir. Eu não me mexi, enquanto você lentamente sumia, enquanto eu me arrependia pouco a pouco.
Então você parou.
Ainda de costas, você abriu e fechou os punhos por 2 segundos antes de girar o corpo sem sair do lugar, mexendo os braços nervosamente. Andou até mim e olhou em meus olhos, respirando fundo, agitada. As cores das suas pupilas mudavam mais rápido quando você estava agitada.
—Me passa seu número?
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Fiapos
De TodoFiapos de histórias inacabadas jogadas ao universo sem saberem seu final. Não necessariamente conectadas, as vezes nem eu mesma conheço-as completamente. Vêm como um turbilhão, as vezes de uma música, as vezes de uma madrugada.