Histórias esquecidas na imundície, trazidas de volta à superfície, onde os olhos podem ler.
O rei se levantou do trono e caminhou até o jovem acorrentado no chão, sujo e ensanguentado, imóvel. Com uma adaga, ele força o mesmo a levantar o queixo e encará-lo. O demônio conservava um brilho insano e em fúria no olhar. Sentimentos vazios e ocos, projeções do que foram um dia, como cores desbotadas pelo tempo ou sombras fracas na parede ocular. Com um sorriso imenso, ele se agacha e sussurra para o garoto paralisado aos seus pés:
—Olhe... olhe a sua nuvem! É um tornado! A última vez em que conheci alguém com um tornado...
Seus olhos perdem o foco por alguns segundos, como se tinta escorresse devagar por seu rosto, em um silêncio que parecia suspender o tempo, o universo aguardando sua próxima ação. Mas logo ele torna a sorrir, voltando novamente suas atenções ao demoninho.
—Não importa, ele está morto agora. Mas veja que linda... ah, é sim. Veja! Você ainda se permite amar. Tão fofo. Sua nuvem rodopia um pouco mais devagar que a minha, vê? A sua carrega o peso das emoções e da sua história. Você valoriza a ambos. É digno. Já a minha... bem, ela gira cada vez mais rápido, cada vez maior e mais escura, refletindo minha alma. Eu desisti das emoções e da minha história, só tenho agora reflexos fracos e patéticos do que foram no passado. Seu tornado é mais devagar, é verdade, mas olhe pelo lado bom, você ainda tem uma alma completa e forte. Bom, não por muito tempo. Eu sou apenas um resto do que já fui, com a Escuridão me consumindo, a mesma escuridão que arrancou e sugou a alma da mãe de minha antiga amada. Esperança...
Seu olhar se torna quase gentil ou melancólico ao pronunciar as próximas palavras, em um tom que mudou de calmo para normal, ou o máximo de normalidade que Shade conseguia alcançar naquele estado.
—Um dia eu também fui como você, fui capaz de amar. Eu amei uma garota. Ela mentiu para mim. Ha ha! Mas eu a amei. E ela também me amou. Pobre Esperança... foi terrível assisti-la queimar. Trevor se suicidou ao fugir dos escombros, aquele garoto fraco. Ah, minhas duas meninas conseguiram fugir, mas eu acabei com elas, sabe como é. Grace foi consumida pela dor, Mira... provavelmente está em algum lugar escuro, onde nenhuma alma virá ajudá-la. Eu amei pessoas. Agora, não sinto mais nada.
Com um pequeno sorriso, o fogo nas pupilas saltitando de um lado ao outro, ele cravou a lâmina na garganta do jovem agora sem vida. Seu sorriso desapareceu, e uma expressão de frieza assumiu seu lugar. Ele fez um gesto à mulher de asas negras ao fundo, o que faz ela alçar voo para capturar a alma do garoto. O rei inclina a cabeça com um olhar vazio, o silêncio novamente o envolvendo e o sufocando, como fazia após todas as mortes.
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Eu me aconchego em seu peito, sentindo seu calor corporal me aquecer, tranquilizante, fechando os olhos e me permitindo relaxar por um minuto. Não, não está tudo bem, mas vai ficar. Era essa a sensação que ele me passava naquele momento, a de que não importasse o que acontecesse tudo melhoraria porque estamos juntos, vamos respirar um pouco e apreciar esse momento enquanto dure. Sinto seus braços me envolvendo, acolhedores e gentis, transmitindo paz. A brisa fria chegava até nós, bagunçando nossos cabelos e me causando arrepios. A rede balançava suavemente ao ritmo do vento, todos os álbuns de Supercombo tocavam em loop na caixinha de som ao nosso lado. Meu desejo no momento era de congelar esse instante para sempre, mas eu sabia que não podia fazer isso. Não podia adiar o que estava por vir. Mas, ah, vamos apenas saborear a sensação de poder fingir que está tudo bem por um segundo. Suas mãos estavam entrelaçadas nas minhas, seu polegar acariciando as costas da minha mão carinhosamente. Uma ninfa cruza o céu, distante, parando um momento para lançar um perfume adocicado na nossa direção.
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Esperança sorri de modo petulante ao prender mais um elástico em uma das mini-trancinhas do demônio de costas para ela, imóvel com uma expressão de tédio e irritação.
— Isso é muito injusto. Era o meu dia de fazer trancinhas. Eu até arrastei o Leon até as lojinhas pra comprar os elásticos, presilhas e pompons que você odeia tanto!
A garota riu com deboche.
— Bem, terá que usá-los outro dia, porque hoje você vai virar a Lady Trancinhas De Sapo Cor-De-Rosa. E para de choramingar, não tá tão ruim assim.
Ahenna bufou, murmurando xingamentos em um tom de voz baixo. Eles estavam em cima da cama do quarto do garoto no hotel Upside-Down Hospice, cujo dono havia adotado o demônio e o mantinha por perto em um dos quartos vips. Esperança e Ahenna haviam montado uma cabana com luzes amarelas fracas penduradas em fios que davam uma atmosfera aconchegante ao lugar. Por toda parte podia se avistar potes de sorvetes vazios, penas de travesseiros, pipoca e embalagens de doces. Ambos estavam vestidos com moletons confortáveis que se completavam, um com a estampa do Marco e outra de Star.
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Fiapos
De TodoFiapos de histórias inacabadas jogadas ao universo sem saberem seu final. Não necessariamente conectadas, as vezes nem eu mesma conheço-as completamente. Vêm como um turbilhão, as vezes de uma música, as vezes de uma madrugada.