Capítulo 5

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Caleb não diz uma só palavra depois disso. Ele espera que eu me deite e busca um copo de água para mim. Quando estou quase adormecendo, ele me deixa sozinha. Sinto sua ausência como se fosse uma presença física, e me cubro até que apenas os olhos estejam para fora, me prendendo em um casulo de cobertas.

Não consigo dormir. Estou ansiosa demais, temerosa demais que os sonhos voltem e eu acorde outra vez envolta em trevas. Tento manter meus olhos abertos e meu coração batendo devagar, e seguro as cobertas contra o corpo como se elas pudessem me proteger do mundo — ou proteger o mundo de mim. Cochilo em algum momento, e acordo sobressaltada, mas a visão do sol nascendo me acalma. Talvez, só talvez, depois que o sol se erguer, eu não consiga mais projetar sombras. Talvez esse seja o segredo; estar sempre banhada pela luz.

Adormeço.

***

Caleb está no meu quarto quando acordo. Não de um jeito assustador, me observando dormir; está apenas deixando uma bandeja com água e comida sobre a cômoda, a porta para o corredor ainda aberta.

— Ah, você acordou! — ele diz, com um olhar que é metade alívio, metade preocupação — Trouxe comida. Não sabia se você... se estava se sentindo bem.

Tento sorrir em agradecimento, mas não sei dizer se consigo ou não o efeito desejado. Sou um desastre. Quero dizer alguma coisa, fazer alguma coisa que retribua um décimo do que ele está fazendo por mim, mas sequer consigo sorrir. Caleb me encara por mais um segundo, e então suspira.

— Bom, eu vou deixar você comer em paz. — diz, indo para a porta.

Mas não quero que ele se vá, não ainda. Não quero ficar sozinha.

— Espere. — digo, então, e ele se vira.

Hesito. Há tantas coisas a serem ditas, e nenhuma que eu consiga pronunciar em voz alta. Resolvo começar pelo básico.

— Obrigada, por ontem. E por anteontem. — falo, devagar — E... desculpe.

— Pelo que? — pergunta ele, e não sei se está brincando ou se verdadeiramente não sabe que tudo que aconteceu na noite passada foi culpa minha.

— Por tudo. — replico, por fim — Sei que estou sendo um peso. Vou sair daqui assim que conseguir me lembrar de alguma coisa.

— Você não é um peso. — ele diz, se aproximando. Há verdade em seus olhos, por mais que eu saiba que há também compaixão; ele jamais admitiria que eu sou um estorvo, mesmo que concordasse comigo — E eu estou preocupado, Mayumi. Me diga como posso ajudar você.

Mayumi. É a primeira vez que ouço Caleb dizer meu nome. É diferente quando ele o diz, como se seu sotaque, de alguma forma, desse outro significado à palavra. De alguma forma, parece mais meu, agora que ele o disse.

— Antes, você estava sonhando. — ele continua, me olhando com curiosidade e preocupação — Mas não eram só sonhos, eram?

— Não. — murmuro, sem conseguir encara-lo.

— Quer me contar?

Demoro um tempo muito longo para conseguir falar. As memórias vêm em flashes descoordenados, na mesma sequência do sonho. Fecho os olhos, levando as mãos às têmporas. Minha cabeça dói, como se para lembrar eu precisasse danificar meu próprio cérebro.

— Eu acho que fizeram alguma coisa comigo. — sussurro, e abraço meus joelhos, encolhendo-me em mim mesma — Alguma coisa ruim.

— Que tipo de coisa? Do que você se lembra? — ele se aproxima devagar, a voz baixa e ansiosa.

— Eles... me prenderam. — fecho os olhos, e posso ver meus dedos agarrando as barras da gaiola — Fizeram testes em mim.

— Que tipo de testes?

— Eu não sei! — exclamo, erguendo os olhos marejados para encontrar os dele — Não sei. Mas, de alguma forma, sei que mexeram comigo. Com o meu corpo, com a minha mente. Alteraram algo em mim.

Uma longa pausa. Posso ver os pensamentos de Caleb por trás de seus olhos, tão transparentes às suas emoções. Ele não sabe se acredita em mim ou não, se confia em mim ou não. É compreensível. Ele só me conhece há pouco mais de um dia e já dei muito mais trabalho do que valho.

Tento imaginar o que faria no lugar dele, mas não conheço a Mayumi do passado — mal sei quem é ela no presente. Talvez eu seja o tipo de pessoa que, assim como Caleb, se dispõe a ajudar e ouvir um completo estranho. Talvez eu jogasse a pessoa na rua na primeira oportunidade.

Percebo que essa é a parte mais difícil. Não se trata de não saber meu nome, de não reconhecer meu rosto, de não saber de onde vim. Eu não sei quem eu sou, no fundo. Não sei se sou boa ou má, leal ou traiçoeira. Posso ser qualquer um, e isso me assusta. E se tudo que aconteceu comigo, o que quer que seja, for merecido?

E se eu estiver pagando por algo que sequer me lembro de ter feito?

Balanço a cabeça, e Caleb dá um salto na cama com o movimento súbito. Então ele respira fundo e diz:

— Ontem, no seu quarto. Aquela escuridão. Não era um blecaute. Era você.

Não é uma pergunta, e ele não precisa de uma resposta. Nos encaramos por um momento, e sei que ele sabe, com tanta certeza quanto eu, que eu fui a causa, mesmo que seja inexplicável.

Caleb comprime os lábios, e então se levanta.

— Coma alguma coisa e tente descansar. — diz, indo em direção à porta. Quando está quase saindo, ele se vira e acrescenta — Não se preocupe, Mayumi. Vamos descobrir o que aconteceu com você.

Ele fecha a porta e, só por um momento, me permito ter esperanças.

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