Tudo acontece tão rápido que mal tenho tempo de processar a chuva de vidro que cai sobre nós antes que mais uma explosão aconteça. Num segundo somos eu e Caleb conversando no carro; no instante seguinte, mãos me puxam pela janela, e alguém me levanta do banco como uma boneca de pano.
Não tenho peso; sou um papel voando à mercê meus captores. Solto um grito, e sinto os cacos da janela cortando minha pele quando forçam minha saída pelo buraco onde antes havia vidro.
Não, não, de novo não. A violência desperta em mim uma memória embaçada, de ter sido arrancada de um outro veículo, em algum tempo distante, numa época da qual não consigo me lembrar mesmo que tente. Quando ouço uma voz gritando meu nome, não sei se é uma projeção daquilo que me lembro ou algo que escuto no tempo presente.
Quero gritar, mas um braço firme trava minha garganta segurando mim por traz e me tirando completamente o ar. Luto com todas as forças que tenho, mas sou pequena, frágil, fraca demais para conseguir me soltar. Tento respirar, mas a garganta fechada pelo braço do meu captor trava antes que eu consiga puxar o ar.
- Mayumi! - Ouço Caleb gritando meu nome. O som de sua voz me traz mais agonia do que a violência em si. Eu fiz de novo, eu o coloquei em perigo. Estão aqui por mim. Não estariam aqui se eu não estivesse aqui. É tudo minha culpa. Se Caleb morrer, jamais me perdoaria.
- Deixem-o ir! - Tento gritar, mas tudo que sai é um fiapo de voz - Eu irei, apenas deixem-o ir!
Minha visão está turva, e no escuro da noite, não consigo encontrar Caleb. Ouço-o gritar, ouço o som de luta, mas não sei onde ele está. Aquela escuridão não é a minha escuridão. São sombras desconhecidas, um lugar completamente novo e repleto de medo.
Sombras, me dou conta de repente. Por que estou lutando com o corpo, quando a minha maior arma não depende da minha força física? Naquele momento, gostaria de ter treinado mais. Gostaria de ter ouvido o conselho de Christine antes, e praticado. Gostaria de não ter temido meu dom por tanto tempo. Agora, essa pode ser a diferença entre salvar a vida de Caleb ou deixar que ele morra. Nao sei se sou capaz do que preciso fazer.
Mas, se não tentar, nós dois morreremos. Caleb morrerá tentando me salvar, e eu morrerei tentando vingá-lo.
Feche os olhos, me concentro, e tento.
Não sei ao certo o que estou tentando fazer. Mesmo quando tentei para praticar, tudo que tive foi instinto e medo. Nas outras vezes, senti a escuridão exalando de mim com uma resposta a situações de tensão. Na sala de Caleb, havia sido difícil me conectar com este dom sem sentir que estava em perigo. Mas agora, é diferente. O perigo está ali, literalmente ao meu alcance, e eu já sei do que sou capaz. Mas, se não tomar cuidado, posso atingir Caleb por acidente. Em vez de salvá-lo, posso ser a causa de sua morte.
Faço esforço. E com as mãos, tentando tocar o rosto, os olhos, a cabeça, qualquer ponto de meu captor. Busco dentro de mim o que sei que está ali. Venham. Obedeçam. Onde vocês estão quando preciso?
Ouça meu próprio grito, se de desespero ou de dor, não sei dizer. Sinto o poder em minhas veias, a sensação inebriante que salta de mim sem que eu consiga controlar. Abro os olhos, esperando a escuridão completa. Mas o que encontro é a luz da lua, dos faróis ainda acesos do carro, e as sombras da noite.
Contudo, o braço que cercava a minha garganta se afrouxa o suficiente para que, com algum esforço, eu consegui me desvencilhar e me soltar. Giro nos calcanhares, encarando o homem que me prendia.
Ele usa um capuz preto sobre a cabeça cobrindo tudo exceto os olhos. Mas, de alguma forma, já não é possível enxergar seus olhos. Eles estão cobertos por uma nevoa, pretos como piche.
Só me dou conta do que acabei de fazer quando o homem começa a gritar.
O pânico me assoma. Sou um monstro, sou um monstro, veja só o que acabei de fazer. Mas não há tempo para sentimentalismos. Preciso chegar até Caleb. Me viro de novo, pronta para ir atrás dele, mas mal dei dois passos, e sinto mãos sobre mim de novo. Desta vez, elas não vêm desacompanhadas.
Uma picada no pescoço, tão breve, tão simples, que por pouco não percebo. Mas está ali, e novamente, sinto uma lembrança quase inalcançável se aproximando. Mais próxima dessa vez, de um dia, há não muito tempo, quando outra picada me preparou para o meu destino.
- Seja boazinha agora, Mayumi. Vou deixá-la sair, mas não se acostume demais. Em breve estaremos juntos de novo. - ouço a voz na minha cabeça com tanta clareza como se a escutasse agora mesmo, ao meu lado.
Os olhos azuis são a última coisa que vejo antes de apagar completamente.
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No Escuro
General Fiction"Com dificuldade, me coloco de pé. O mundo gira à minha volta, entrando e saindo de foco, como uma câmera quebrada. Cambaleio, e me apoio em algo duro e gelado; uma pia. Apoio-me nela, e ergo os olhos para um espelho sujo na parede. Não consigo dist...