— Que merda foi aquela? — é a primeira coisa que Christine diz quando chegamos. Passamos o caminho todo em silêncio no carro, e eu podia ver sua expressão dura pelo retrovisor.
Agora, ela joga a bolsa sem cerimônia sobre o balcão da cozinha e encara eu e Caleb com um olhar de fúria e traição. Há espaço o suficiente para que eu passe por ela e fuja pela tangente, mas de alguma forma, é como se Christine estivesse bloqueando todas as saídas. Não consigo me mexer.
— Qual parte? — Caleb responde, sem se impressionar. A vida, imagino, o treinou para situações como aquelas, para lidar com os rompantes da irmã sem se deixar abalar.
— Lá no café. O blecaute.
— Foi só isso, Christine, um blecaute.
— Merda nenhuma! — ela cruza os braços, erguendo o nariz numa pose desafiadora — Haviam luzes de emergência na sala, e elas não se acenderam. Quando a luz voltou, não era como se o computador tivesse reiniciado. Era como se tivesse permanecido ligado o tempo todo, mas nós não pudéssemos ver.
Caleb não diz nada, e o olhar de Christine recai sobre mim. A verdade está entalada em minha garganta, mas não consigo me forçar a dizê-la; seria como uma admissão de culpa, um atestado de loucura. Seria aceitar que sou uma aberração. E não posso. Não quero. Não sei como.
— Não sei o que você espera que eu diga. — Caleb continua, então, tão indiferente que eu poderia jurar que ele não sabe de nada — Caiu a energia, e então voltou. Fim da história.
Christine não parece nada convencida, mas ele segue em frente:
— De qualquer maneira, vamos focar no que interessa. Temos provas agora. Pegamos a placa da van.
— É, pegamos. — Christine concorda, seu olhar ainda se demorando em mim, desconfiada. Por fim, parece ser vencida pela própria curiosidade e suspira — Mas acho que é fria. Vou pesquisar, mas duvido que dê alguma coisa. Quem quer que tenha começado isso, não seria tão descuidado.
— Você se lembrou de alguma coisa, não lembrou, Mayumi? — Caleb vira-se para mim de repente — Lá dentro, no escritório.
Fecho os olhos e faço que sim. Ainda consigo ver as luzes muito brancas, sentir o cheiro de hospital, sentir a picada da agulha. Como antes, a lembrança me engolfa, mas é mais fácil desprender-me dela desta vez. Quando abro os olhos, Caleb está na minha frente, encarando-me com preocupação. Ele não me toca, mas sinto-me abraçada mesmo assim, como se a proximidade fosse o bastante.
— Não precisa nos contar, se não estiver pronta. — acrescenta, mais baixo.
— Mas iria ajudar pra caramba se contasse. — Christine comenta, sem cerimônias.
Engulo em seco. É difícil, falar sobre isso; não apenas pela dor quase física das memórias, mas por me faltarem palavras. Sei o que vi, do que me lembrei, mas é difícil descrever. Respiro fundo.
— Lembrei do... laboratório. — digo, devagar. Hospital parece uma palavra benévola demais para ser usada nesse contexto; não fui curada de nada, até onde me lembro, e sim transformada, danificada — Lembrei de um médico.
— Consegue descrever o rosto dele? — Christine se adianta, como uma profissional. Baixo a cabeça, me sentindo inútil.
— Não. — murmuro — Só me lembro dos olhos. Azuis, vibrantes.
Os irmãos não respondem. Respiro fundo mais uma vez e cruzo os braços, abraçando meu próprio corpo. A mera memória faz com que eu trema.
— Ele dizia que eu tinha que me comportar. — continuo, uma palavra de cada vez — Que, se eu ficasse quieta, acabaria mais rápido, e eu poderia comer. Mas eu não queria comer. Só queria sair dali.
Sinto meus pulsos apertados, como se estivessem presos. Tento puxar minhas pernas, mas sinto que não consigo movê-las. Minha boca está seca, a pressão de uma mordaça sobre elas quase me impedindo de falar. Mesmo assim, encontro minha voz.
— Eu quero dizer que não quero, que não vou, que não posso, mas não consigo. Não consigo falar. — digo — E quero me soltar, mas não consigo. E então ele vem, e ele... ele...
Só percebo que estou me debatendo quando as mãos gentis de Caleb encontram meu rosto. Seu toque é tão leve que quase não percebo, mas pela segunda vez em um único dia, é como se ele me trouxesse de volta à terra. Paro, abro os olhos, e o vejo parado diante de mim. Sua respiração faz cócegas na minha pele.
— Está tudo bem. — ele diz, baixinho — Você está livre. Não vai mais ter que voltar para lá.
Faço que sim, e após um instante de hesitação, ele me solta. Minha pele está quente onde ele me tocou, formigando de um jeito agradável.
Ele se afasta, o rosto ficando corado. Christine desapareceu sem que eu percebesse, sua bolsa ainda jogada sobre o balcão da cozinha. Por fim, Caleb me diz:
— Vá descansar. Eu te chamo quando a comida estiver pronta.
Aceno silenciosamente e corro para o meu quarto, onde, eu espero, os pesadelos não conseguirão me pegar.
VOCÊ ESTÁ LENDO
No Escuro
General Fiction"Com dificuldade, me coloco de pé. O mundo gira à minha volta, entrando e saindo de foco, como uma câmera quebrada. Cambaleio, e me apoio em algo duro e gelado; uma pia. Apoio-me nela, e ergo os olhos para um espelho sujo na parede. Não consigo dist...