Capítulo 14

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- Acho que descobri alguma coisa. - Christine anuncia na manhã seguinte.

Estou deitada no jardim, sentindo a grama sob meus dedos e o sol sobre a minha pele. Aquele se tornou meu refúgio nos últimos dias. Mesmo depois do que Caleb me disse outro dia, ainda não tive coragem de sair, de explorar o mundo além dos muros daquela casa. Temo que, se partir, não saberei para onde estou indo, ou pior - não encontrarei meu caminho de volta para casa. De volta para ele.

Não posso pensar nisso. É egoísta demais, até mesmo para mim.

Levanto e encontro os dois parados na porta, Christine com um papel na mão e Caleb apoiado no batente com o cotovelo. Não reparo em como a camisa dele se levanta perto do cós da calça, nem na pele branca que deixa à mostra. Não reparo no desenho dos músculos do braço, nem em como seu cabelo está ainda bagunçado da noite de sono. Não reparo em seus olhos, tentando não reparar em mim.

- Então, a LAS Consultoria não existe, certo? - Christine emendou, antes que qualquer um de nós tenha a chance de perguntar sobre suas descobertas - Mas andei fazendo umas ligações e pesquisando aqui e ali, e descobri sob o nome de quem ela está registrada. O nome dela é Marie Anderson.

- E qual é a dessa Marie? - pergunta seu irmão.

- Que bom que perguntou. - ela sorri e chacoalha a folha branca em suas mãos - Marie Anderson é um nome surpreendentemente comum, sabia? São 20 só na nossa humilde cidade. Então tive que pesquisar manualmente sobre cada uma delas. Vou fazer uma pausa aqui para vocês me agradecerem.

- O-obrigada? - gaguejo, e me sinto ridícula quando Caleb continua em silêncio. Christine sorri ainda mais.

- De nada, Mayumi. - responde, lançando um olhar de esguelha para o irmão - Muito bem. Então, dentre todas as mais de vinte candidatas, haviam somente duas Marie Anderson que me interessavam. Uma delas é, de fato, uma consultora financeira, o que ajudaria muito na construção da nossa empresa de fachada. A outra, é esta aqui.

Ela vira a folha de papel teatralmente e a mostra para mim. Chego mais perto para que eu e Caleb possamos lê-la juntos. É a cópia de uma carteira de motorista no nome de Marie Leila Anderson, nascida em 7 de Junho de 1969. A imagem em preto e branco é de uma mulher negra, de olhos e lábios largos, o cabelo puxado para trás em tranças.

- Conheçam Marie Anderson, morta em 18 de Agosto de 2007.

- E por que uma mulher morta é interessante? - é Caleb quem pergunta. Christine aponta para um outro documento na parte de baixo da página.

- Porque enquanto era viva, Marie foi casada por doze anos com um Arnold Anderson. - enquanto fala, ela puxa o celular do bolso - Ele é médico e cientista, especializado em biologia molecular, e prestou serviços militares por cinco anos antes de sumir da face da terra, bem na época em que sua querida esposa faleceu.

- Você acha que ele teve alguma coisa a ver com a morte dela?

- Quem sabe? O relatório oficial aponta a morte como causas naturais, mas a esta altura, estou aceitando qualquer teoria de conspiração. - Christine toma de volta o papel e nos estende o celular, aberto em uma página da Wikipedia - O mais importante é que o dr. Arnold fez muitos experimentos bizarros e controversos no seu tempo como pesquisador, antes de ir para o exército. Ele mexeu com um pouco de tudo, mas sempre voltado para o genoma humano e suas possíveis alterações. Ele tem até mesmo um artigo publicado explicando como se poderiam forçar mutações genéticas em seres humanos. Pelo que pude ver por aí, a comunidade científica não abraçou muito a ideia.

- E isso quer dizer que...? - Caleb insiste, devolvendo o celular. Christine suspira e revira os olhos, olhando para mim como se dissesse consegue acreditar nisso?, quando na verdade estou tão perdida quanto ele.

- Vamos pensar nisso por um segundo? - ela ergue a mão e começa a enumerar os fatos enquanto fala - Médico, especialista em genoma e mutações, cientista maluco de experimentos humanos, trabalhou no exército. Ele é praticamente um vilão esperando para ser criado!

- Você tem alguma foto dele? De repente a Mayumi se lembra de alguma coisa.

- Tenho, espera um pouco.

Não tenho tempo para dizer que não quero, que não posso, que não sei se consigo reconhecer alguém, mesmo com uma imagem. Num segundo, Christine tem o celular para si, e no instante seguinte ela o vira para mim, a tela cheia com a imagem de um homem.

Ele não parece ameaçador. A foto pode ter sido tirada em algum congresso, ou simplesmente em uma daquelas sessões de fim de ano tão comuns a algumas famílias. Ele é quase careca, só os cantos da cabeça cobertos por ralos fios castanhos. Está usando uma camisa verde-musgo, e olha para a câmera meio de lado, empoleirado em um banco alto. Mas não é nada disso que chama a minha atenção.

O que de fato me mantém presa à imagem são os olhos. Adornados por óculos de aros finos, há um par de olhos tão azuis que parecem elétricos. Eles congelam meu sangue em minhas veias e sufocam meu nariz e garganta, e quando dou por mim, estou sufocando. Não sei o que acontece primeiro, se minha falta de ar ou o tapa que lanço sobre a mão de Christine, fazendo o celular voar em direção ao chão.

- Ei! - ela grita, mas mal posso escutá-la. O mundo à minha volta está girando e girando, e não há ar suficiente para que eu respire, nem chão que me mantenha de pé. Estou caindo. Estou me esvaindo.

Seja uma boa menina, Mayumi, e fique quieta para que eu consiga examiná-la.

Fecho os olhos e ele está diante de mim, sobre mim, o rosto parcialmente coberto por uma máscara cirúrgica.

Por favor, de novo não!

Minha voz é infantil. Não sei dizer quando a cena aconteceu, ou se aconteceu de verdade. Entre minhas lembranças e a vida real há uma cortina pesada de fumaça, que se torna cada vez mais sólida quando tento atravessá-la.

O que nós combinamos? Teria um dia de folga, se comesse. Agora serei obrigado a começar tudo de novo. No fundo, você sabe que é culpa sua.

Não é culpa minha, não é culpa minha, não é culpa minha!

- Mayumi? - Caleb chama no mundo real, ou na minha imaginação, não sei dizer. Sinto mãos tocando meus braços, e a imagem do jardim se funde ao momento exato em que sou carregada para fora da van, pronta para ser abandonada em um banheiro de uma estação qualquer.

Então faço o que não pude fazer antes, e explodo.

É intenso e repentino e decididamente impossível. Abro os braços, mas não é com minha pele que atinjo Christine e Caleb, e junto deles, meus captores - é com a alma. A escuridão que domina salas e obscurece mundos inteiros forma uma bolha ao meu redor, sólida como rocha, e empurra para longe todos que tentaram me fazer mal. Todos que tentaram me deter.

Mas não há malfeitores ali, percebo, ao abrir os olhos e dar com Caleb e a irmã jogados no chão, ela no jardim e ele dentro da cozinha. Não estava ferindo quem me feriu, e sim machucando quem tentou me proteger. Não há ameaças reais - não além de mim.

- Me perdoem. - digo, mas não fico para escutar suas desculpas. Antes que consigam se levantar, estou correndo.

Não para cima, desta vez, não correndo a me esconder num quarto que não me pertence. Desta vez, quando corro, o faço para fora, para longe, sem direção ou destino, sem pensar em como ou mesmo se pretendo voltar.

No EscuroOnde histórias criam vida. Descubra agora