No passado

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— Capítulo 9 – Samuel —

          Uma vez me perguntaram, acho que numa daquelas atividades chatas que a tia do ensino fundamental costuma nos passar: qual é a pessoa mais importante pra você no mundo e por quê?

          Eu não me lembrava direito o que respondi, mas devo ter dito que era minha mãe e enchi a folha de blá-blá-blá por diversas razões infantis, e, claro, para não ficar mal com a mamãe. Mas acho que minha escolha poderia ter sido diferente — e não falo de nenhum interesse romântico juvenil, graças a Deus.

          Naquela época, quando criança, eu tinha, durante cerca de cinquenta por cento do meu tempo, uma pessoa em mente.

          Sempre pensava no por que minha irmã, Beatriz, recebia tanta atenção dos meus pais, e não podia fazer nada do que eu ou as outras crianças da idade dela faziam: brincar, correr, pular e o pior de tudo... falar.

          Hoje, eu conseguiria responder aquela pergunta numa boa.

          Abri a porta do quarto dela e puxei as cortinas aveludadas da janela no canto do quarto, revelando um dia nublado, embora não muito feio. Pássaros negros cantavam, pousados sobre a grama na lateral do nosso chafariz. Bia já estava acordada, se remexendo na cama. Ela costumava acordar cedo, muito cedo, mas mesmo assim continuava deitada. Não podia escapar pra lugar algum e perambular pela casa à noite. Esse era um problema com o qual eu, papai, mamãe, tios, primos e todos os outros cinquenta e três empregados nessa casa nunca precisamos nos preocupar. Nesse quesito, seu estado semiparalítico não fora uma maldição tão terrível. Pelo menos não para as pessoas que tinham que cuidar dela, apesar de isso ser, sinceramente, uma maneira muito egoísta de se pensar. Para se ter uma ideia do quão crítica era sua situação, nossos quartos ficavam colados, e eu tinha uma televisão que a monitorava através de uma câmera de segurança instalada no teto, caso ela passasse mal ou ocorresse algum acidente noturno.

          Não se preocupe, filho. Você não precisa fazer isso dia e noite. Vá viver a sua vida. Esse não é um fardo que alguém jovem como você deveria carregar.

          Era o que mamãe adorava me dizer depois que instalei aquele negócio por conta própria. Talvez eu estivesse me esforçando demais na visão dela, ou, quem sabe, ela apenas quisesse que eu me concentrasse naquela atividade que orgulhava essa minha enorme família de nobres sem causa. Já que toquei no assunto, acho que desde que nasci, eu os via como uma família de nobres da idade média. Afinal, quem nesse país poderia viver com todos os parentes juntos num só lugar? Talvez alguém com muito dinheiro e uma mansão enorme, é claro. E nós nos encaixamos nessas duas categorias. Ah, e na categoria "caipira" também, quase me esqueci.

          Fui até a cama da Bia e percebi que ela estava mexendo em seu tablet por debaixo das cobertas. Ouvia sua música favorita em volume bem baixo, uma canção movimentada para crianças. Bia odiava ficar parada, até dormindo!

          — E então, vamos nos levantar? — Ela fez uma careta sorridente e colocou o tablet de lado. Seus olhinhos ficavam parecendo pérolas quando sorria. — Espere um pouco que seu maninho vai te erguer.

          Então, a peguei e a apoiei nas minhas costas, sentindo-a envolver seus compridos braços ao redor do meu pescoço. Quando éramos mais novos, essa aproximação era quase impensável. Ela se sentia desconfortável quando eu a tocava e rapidamente tentava se desvencilhar. Isso me deixava triste, não vou mentir, mas se não fosse por isso, talvez hoje eu não estivesse aqui, ajudando-a a se levantar de manhã. Eu seria apenas um jovem vivendo a vida sem me preocupar, como disse mamãe, com um "fardo" desse tamanho. Entretanto, foi graças a essa resistência inicial da Bia em relação a mim que eu me esforcei cada vez mais para que criássemos um vínculo.

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