Doce Heresia

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"As coisas que fazemos, pelo que fazemos" — Autora

Empoleirada sobre a torre de metal, ela assistia o nascer do sol se erguer preguiçosamente entre as montanhas, sentindo a correnteza dos ventos vindas do oeste colidirem contra o seu corpo, fazendo-a sentir, mesmo que distraidamente, livre dos sentimentos que se perdiam em seus pulmões e a queimavam lentamente. A quentura do chá dentro do cantil já tinha se dissipado há muito no ar gelado, embora ela permanecesse apertando o recipiente com firmeza em suas mãos. A única diferença entre Rey e as outras pessoas, é que ela sempre exigiu mais do pôr do sol; cores mais espetaculares quando ele tocava o horizonte.

Talvez seja este seu único pecado.

A inteligência era um dom dado para poucos, mas que quando via-se abençoado com ela, era preciso pensar com clareza a maneira como iria utilizá-la. E Rey internalizou esse aprendizado como ninguém, colocando pedra sobre pedra de forma cuidadosa e atenta, antes de finalmente alcançar o seu objetivo em mente.

Três semanas se passaram e o ferimento em sua coxa tornou-se, agora, uma lembrança dolorosa e quase imperceptível fisicamente. Ela já conseguia caminhar normalmente fazia alguns dias, embora escolhesse mancar de quando em quando a fim de espantar um incômodo momentâneo causado pelo impacto de se mover, ou então no intuito de criar a impressão de falsa incapacidade aos olhos analisadores de Benjamin. Rey sentia a tensão se acumular na boca do estômago à medida que os dias passavam. As coisas pareciam estar fora de controle, longe de seu alcance, como se a ela restasse tão somente permanecer na fazenda e esperar pelo que estava por vir.

Apesar da morena estar ganhando espaço na vida do homem e tentando conquistar sua confiança aos poucos, a tarefa não se mostrava fácil como de fato imaginou. Ele a ensinou as formas peculiares de se operar o preparo das refeições e das tarefas domésticas da casa, apresentando o lugar onde conseguia a areia e o modo correto de construir as trilhas ao redor da fazenda. De fato, ele somente o fizera após uma série de pedidos suplicos dela, uma vez que não desejava enfrentar os dias sem ocupações que pudessem espairecer a mente. Por conseguinte, Rey se pegava cada vez mais impressionada com as técnicas empregadas na sobrevivência de Benjamin, incapaz de enxergar a si mesma junto aos pais pensando em qualquer uma daquelas artimanhas no começo de tudo.

Quando os primeiros raios de sol começaram a se lançar sobre a fazenda e iluminarem a pele de Rey, ela jogou a cabeça para trás sentindo o calor se espalhar por toda a região. Êxtase e paraíso. Eram os adjetivos apropriados para descrever aquele lugar na cabeça da morena; um éden de estabilidade e comodidade em meio ao inferno que o mundo havia se transformado. O lar de seu salvador, consistia-se em uma clara comprovação do resultado que esforços coletivos poderiam culminar: segurança e anos e anos de vida a todos os envolvidos.

Rey achava-se impossibilitada de cessar as reflexões de como teria sido sua vida se tivesse topado com Benjamin, ao invés de seu grupo anterior. Os pais ainda estariam vivos e seu corpo salvo das cicatrizes de Finn, ela afirmava com certeza cega.

Mas de nada adiantava pensar no e se nesse momento, uma vez que precisava se concentrar no e como a partir de agora. A inserção no dia-a-dia de Solo serviu como ponte de aproximação entre ambos em amplos aspectos, favorecendo o desejo dela de se aprofundar nos pormenores de sua vida rural, conforme averiguava o percentual de chances de sua empreitada ser bem sucedida ou se o plano seria um fracasso eminente, afinal.

As orbes esverdeadas voltaram a observar os últimos instantes do cintilar das labaredas à sua frente, antes que estas desaparecessem e deixassem um rastro de fumaça escura para trás. Não tardou muito e as fogueiras dos vizinhos de Benjamin seguiram o exemplo da primeira, sendo perceptível apenas a fumaça negra se dissipando no céu logo depois. Ela o vira fazer aquilo inúmeras vezes ao longo dessas três semanas; sempre na mesma hora e em todo santo dia. Por vezes, após o apagar das chamas, ele só ficava lá sentado durante vários minutos, fumando um cigarro enquanto contemplava o horizonte. 

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