Mudança

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Olhei cada vão canto, cômodo e espaço de minha casa. Meu quarto, a dispensa, a sala, a cozinha, o banheiro, os móveis, a garagem e o carro. Tudo continuava igual. Os cômodos estavam apertados e cheios de coisas espalhadas, como de costume. Os móveis, dispostos próximos, com as mesmas lascas, a mesma aparência defasada e todas as marcas que me remetiam às situações passadas. Até o carro tinha o mesmo cheiro e a mesma sensação de dirigir. O que havia de errado, então?

Fui até a sacada de minha casa, no décimo terceiro andar, e olhei para toda a cidade. Novamente, tudo igual. As luzes dos outros prédios, os barulhos incessantes, o cheiro, as pessoas transitando pra lá e pra cá, o trânsito... Tudo. Tudo igual. Fiquei ali, observando a vista e refazendo a simples pergunta que eu me fizera a semana inteira: o que havia de errado?

Não sabia. Não sabia, de verdade. Tentei achar brechas em tudo que eu havia consultado e parti da sacada para a cozinha, voltando com uma cadeira, uma cerveja e um pacote de salgadinhos. O processo de compreender o incompreensível era longo e não poderia ser feito sem um bom tira-gosto.

Compilei as principais coisas que me fizeram questionar sobre o que de errado havia. O primeiro acontecimento era a falta de interesse em encontrar meus amigos. Normalmente, saímos para um barzinho, para uma festa ou mesmo íamos para a casa de alguém, ver um futebol e beber. Porém, isso não me animava mais. Não sabia o porquê, mas estar longe de casa e com aqueles amigos não era tão legal. Não era como das primeiras vezes, onde tudo era farra e risada. Tinha algo de diferente, mas o quê?

A segunda situação aconteceu quando Thábata, uma garota que me deixava louco, me chamou para sair. Eu estava na dela há algumas semanas e nossos horários não batiam nunca e, quando bateram, eu não quis. Não quis sair de casa, ir para um bom restaurante, ter um sexo e depois esquecê-la, como sempre fiz com outras garotas. Thábata não era especial, porque eu não queria ter um relacionamento com ela, o intuito sempre foi uma noite e ponto. Havia algo de errado, eu tinha certeza.

O terceiro episódio foi no trabalho. Nunca curti ser atendente de banco, acho que ninguém curte, na real, mas eu sempre fiz o que era preciso. Eu engolia o trabalho e pronto. Não tinha do que reclamar: o salário era bom, o ambiente era confortável e a carga horária, baixa. Mas algo tinha mudado. A monotonia começara a me deixar bravo e carrancudo. Quando criança, eu me imaginava sendo um cara nobre, não alguém que se aproveita do desespero alheio para enfiar-lhes em dívidas e mais dívidas. Mas eu sempre fiz isso, então, novamente, o que havia de errado?

Beberiquei a cerveja e suspirei em frustração. Vi a última luz do prédio da frente se apagar. Era madrugada de uma segunda-feira, todos dormiam, ou pelo menos tentavam. E eu? Eu estava sentado na sacada, bebendo.

Foi então que uma luz flutuante acendeu acima de minha cabeça e me fez entender o que tanto queria. Eu era o problema. Todos os acontecimentos que me fizeram refletir sobre o que estava errado, eu era a chave.

Eu havia mudado, de alguma forma. Amadurecido, crescido, entendido o que da vida eu quero ou o que ela quer de mim. Percebia que os amigos eram rasos, as noites passageiras e o trabalho, fútil. Nada contra atendentes de banco, eu só que não gostava de ser um. Não sei o porquê demorei tanto tempo para compreender o compreensível.

Descobrir que você mudou não é um bicho de sete cabeças, mas eu havia gastado todo o meu fim de semana e o resto do que sobrara da segunda-feira para tal feito. Deixei os tira-gostos de lado, apaguei as luzes de minha casa e fui dormir. Fui dormir com a decisão de mudar tudo o que me incomodava. Mudar cada vão canto, espaço e cômodo de minha vida.

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