Aquela tinha sido a primeira vez que a Dona Maria Amélia Flores se tinha perdido na sua própria terra, que conhecia tão bem como a palma da sua própria mão. Fora também a primeira vez que a família teve medo real das consequências do seu Alzheimer. Felizmente para todos, a doença ainda estava no princípio e parecia avançar a um ritmo lento, tornando os episódios de confusão e desorientação esporádicos.
— Apetece-me comer um doce... — cantarolou Amélia.
As netas, Constança e Adriana, reconhecendo a rua por onde caminhavam, dirigiram um sorriso cúmplice à avó.
Na esquina seguinte, viraram à esquerda, descendo a rua sobre o alcatrão para evitar escorregar nas pedras da calçada polidas pelo passar dos anos. Minutos depois, estavam as três sentadas na esplanada do café Pintassilgo. Constança deixou a máquina fotográfica sobre a mesa e Adriana ajeitou os sacos da fruta pousados aos seus pés antes do jovem empregado do estabelecimento aparecer.
— Uma bica e três natas — pediu Constança.
— Depois pode trazer-me um copo de água, por favor? — acrescentou Amélia.
— Com certeza. Trago já — respondeu o rapaz, afastando-se em seguida.
Adriana tirou o telemóvel do bolso para responder à mensagem acabada de entrar. Amélia e Constança contemplaram as ruas.
— Sabem alguma coisa do vosso pai? — perguntou a velha senhora ao fim de algum tempo.
O seu filho mais novo, Afonso, pertencia à marinha e estava já há alguns meses ausente do país, embarcado num navio no Mediterrâneo. Ele e a sua equipa estavam envolvidos nas operações de controlo e resgate de migrantes ilegais e no apoio ao combate de tráfico humano e às redes criminosas transnacionais. Vez ou outra Afonso ligava aos pais para dar notícias e saber novidades, mas o Sr. Alfredo e a Dona Amélia ficavam a par das coisas maioritariamente por causa da nora e das netas.
— A missão dele acaba no final do mês. Depois disso vem para casa por um bom tempo — respondeu Constança.
O empregado retornou à mesa com o pedido. Adriana largou o telemóvel mal sentiu o cheiro do pastel de nata e pegou no frasco de canela em pó assim que este foi colocado à sua frente sobre a mesa. Amélia sorriu com prazer ao pegar no doce e Constança bebeu um gole de café antes de provar o seu. Como sempre, a massa folhada partiu-se aos pedaços, misturando-se na sua boca com a textura cremosa do interior do pastel de nata. A canela que ela tinha polvilhado por cima do doce uniu os dois sabores num casamento perfeito, enchendo-a com uma enorme sensação de prazer.
— Os pastéis da Manteigaria são os melhores... — murmurou Adriana, de boca cheia, referindo-se à fábrica não muito longe dali que fornecia aquele café.
A avó e a irmã não puderam deixar de concordar.
A conversa entre as três retomou quando só restava o pó da canela nos guardanapos sobre os pratos brancos, entretendo-as por alguns minutos. Quando Amélia pegou no copo para beber o último gole de água e Constança agarrou na carteira pronta a pagar a conta, um homem aproximou-se da sua mesa.
— Bom dia, Dona Amélia! Ainda bem que a vejo.
Os três pares de olhos voltaram-se para o recém-chegado. Era um homem na casa dos 50, careca e com barba loira rala. As duas jovens não faziam a mínima ideia de quem ele era e o seu receio era que a avó também não, a julgar pelo tempo que estava a levar para o analisar em silêncio.
— Não se lembra de mim?
— A sua cara não me é estranha... — murmurou a idosa.
— Sou o Tiago Fonseca. Bem, o Tiaguinho... — acrescentou num murmúrio, talvez perdido em memórias.
— Já sei! — exclamou Amélia, soltando uma gargalhada. — És o amigo do Carlos que andava sempre atrás da minha Teresinha! — acrescentou, referindo-se aos seus dois filhos mais velhos. Tiago corou em resposta, envergonhado. — Ainda me lembro de vos ver a correr lá na rua, para cima e para baixo, sempre a brincar a qualquer coisa. Mas o que é feito de ti? Como é que tens passado, filho? Os teus pais estão bons?
— Vai-se andando, Dona Amélia. O pai teve de pôr uma prótese na anca, mas já está aí para as curvas outra vez. A minha mãe morreu, já faz três anos. Tinha cancro.
Amélia mostrou o seu pesar e o homem agradeceu. As netas, por seu turno, uma a tirar fotos às varandas com a máquina fotográfica para um projeto do curso e a outra a jogar no telemóvel, mantinham um ar desinteressado, sem deixar de ouvir a conversa.
— Fui trabalhar para Angola aos 25 — continuou Tiago. — Voltei há quatro anos por causa da doença da minha mãe e por cá fiquei. Estive uns tempos aos papéis, mas agora vou abrir um negócio com o meu filho aqui perto.
— Ai sim? Isso é ótimo.
— Estamos a restaurar o Gato de Rua. — Os olhos de Amélia iluminaram-se com a menção do estabelecimento que a vira crescer. As netas repararam na reação da avó com curiosidade. Aquele nome era-lhes familiar. — Abrimos daqui a duas semanas, no 85º aniversário do espaço, e eu queria convidá-la para cantar na noite de reinauguração.
— O que é o Gato de Rua? — perguntou a mais nova com indiscrição.
Tiago olhou para as duas jovens que acompanhavam Amélia.
— Estas são as filhas do Afonso — esclareceu a idosa. Cumprimentos e comentários sobre idade, altura e a passagem do tempo foram trocados antes da senhora ter oportunidade de satisfazer a curiosidade de Adriana. — O Gato de Rua é uma casa de fados onde em tempos cantei.
Concha e Adriana perceberam logo porque é que conheciam aquele nome. Desde miúdas que sabiam que a avó era fadista, apesar de já não cantar nada de especial há muito tempo. O Gato de Rua tinha sido a casa de fados onde a carreira de fadista da avó se tinha iniciado, quando ela tinha 12 anos. Foi também aí que terminou, muitos anos mais tarde, aquando do encerramento da tasca.
— Eu e os seus filhos adorávamos ouvi-la cantar quando éramos pequenos. Seria uma grande honra recebê-la para a ouvir cantar outra vez.
Concha e Adriana ficaram entusiasmadas. O evento seria perfeito para não só entrar numa casa de fados pela primeira vez em décadas, como também para ouvirem a avó cantar a sério, em vez do típico cantarolar na cozinha ao sabor da rádio.
Contudo, instantes depois, a ficha caiu. Talvez não fosse boa ideia deixar a avó subir a um palco em frente ao bairro todo, se não mesmo mais pessoas, dado o seu estado de saúde.
As netas de Amélia preparavam-se para informar Tiago da condição de saúde da avó e recusar educadamente o convite feito quando, de repente, a própria senhora falou, sem dar hipótese às jovens de dizer fosse o que fosse.
— Eu adoraria cantar no Gato de Rua uma última vez.
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Memórias Ao Vento ✔
Historia CortaConto escrito para o desafio 21 do perfil RomanceLP. Constança é apaixonada por fotografia desde que o pai lhe ofereceu uma máquina fotográfica digital pelo seu décimo aniversário. Fotografar é a segunda coisa mais importante da sua vida: a seguir à...