V | "Gaivota"

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Naquele final de tarde, Amélia questionou-se porque é que não tinha regressado ao palco mais cedo. Ao olhar em volta na tasca cheia de pessoas que esperavam o jantar da reinauguração do Gato de Rua, ela sentiu-se em casa. E como se tal não bastasse, tinha o coração cheio ainda antes de cantar: tinham vindo todos os filhos e netos, amigos e conhecidos que tinham a agenda livre naquela noite de sexta-feira.

Ainda era cedo, mas a casa já estava praticamente cheia.

— Importa-se de vir comigo, Dona Amélia? — perguntou Tiago ao aproximar-se da mesa onde os Dias estavam sentados a petiscar. — Tenho uma coisa para lhe mostrar. 

Amélia levantou-se em conjunto com os netos que o dono do estabelecimento restaurado convidadou com um gesto e todos seguiram Tiago para as traseiras.

— Encontrei uma coisa durante as limpezas que eu gostaria que visse.

Entraram num pequeno escritório que tinha dois caixotes ao lado de um pequeno sofá. Com a permissão do anfitrião, os mais novos aproximaram-se para remexer no seu conteúdo. Amélia sucumbiu às lágrimas quando Constança lhe mostrou as fotografias e cartazes que estavam dentro da caixa.

Já não bastava ter encontrado fotografias suas penduradas na "Parede de História" na entrada da tasca como ainda teve a oportunidade de rever os cartazes que publicitavam as suas atuações de outros tempos.

— Estas caixas são só de fotografias e artigos seus — disse Tiago, muitos minutos depois. — Pode ficar com elas, se quiser.

Amélia assentiu em agradecimento e os netos carregaram as caixas em direção à mesa onde estava o resto da família, cheios de orgulho e felicidade.

Tiago acompanhou Amélia de volta à sala principal, dizendo que estava na hora. Enquanto o homem subia ao estrado de madeira para anunciar a convidada de honra da noite e a razão pela qual a convidou, elucidando a plateia sobre a história que o Gato de Rua e Amélia tinham em comum, a septuagenária deixou-se ficar para trás, na sombra.

Enquanto esperava pelo seu momento, ela observou a mesa da família. Os seus filhos mais velhos tinham trazido os seus cônjugues e encontravam-se com alguns dos respetivos filhos. Helena, ladeada por parentes com os quais não partilhava uma qualquer gota de sangue, encontrava-se a admirar as fotografias dos caixotes. Constança, agarrada ao namorado, segurava uma máquina fotográfica. Tinha pedido à avó, naquela manhã, permissão para a fotografar e a senhora tinha consentido sem qualquer problema.

Adriana e Guilherme estavam muito animados do outro lado da mesa, com uma câmara de filmar. Tinham ficado encarregues de gravar a atuação para que os familiares que não estavam presentes, incluindo o seu filho Afonso, pudessem ver a atuação. Ao lado de Guilherme estava António e, mesmo do outro lado, o lugar de Alfredo estava vazio. Onde estaria ele?

— Senhoras e senhores, apresento-vos a principal fadista desta noite: Maria Amélia Flores.

Amélia subiu ao estrado recebendo os aplausos. Depois virou-se para os guitarristas do noite. Na guitarra clássica estava um homem que Amélia nunca tinha visto antes e, na guitarra portuguesa, estava Alfredo.

Os dois trocaram um sorriso cúmplice e a velha senhora não resistiu em ir beijar o marido.

— Obrigada por tudo — sussurrou.

— Não duvido, nem por um só segundo, de que vais conseguir. 

Amélia retornou ao centro do palco com um sorriso no rosto.

— E agora... Silêncio que se vai cantar o Fado — disse Tiago, antes de se juntar ao filho que servia as refeições na sala.

Alfredo começou a dedilhar as cordas da guitarra que tinha construído de propósito para acompanhar a voz da mulher durante a sua juventude e o outro guitarrista seguiu-o. Mas no momento em que Amélia deveria começar a cantar, nada aconteceu.

A família ficou preocupada. Teria ela esquecido a letra? Teria ela esquecido quem era e onde estava? Estaria demasiado nervosa por cantar ao fim de tanto tempo? Estaria arrependida da sua decisão?

Alfredo e o guitarrista voltaram aos acordes iniciais sem nenhuma pausa, como se nada tivesse acontecido. E da segunda vez, os olhos que Amélia tinha fixos no xaile apertado nas mãos fecharam-se, para que a fadista pudesse cantar de cabeça erguida.

Amélia nunca chegou a esclarecer o que aconteceu naquele compasso. Mas a família não lhe deu qualquer importância, porque o que lhes ficou na memória foi a voz melodiosa que acompanhou o choro das guitarras nessa noite, e todos os sentimentos que a fadista transmitiu ao cantar. Houve tristeza, houve alegria. Houve saudade. E, acima de tudo, houve amor e dedicação, que escorreram diretamente das palavras de Amélia para a plateia, arrepiando e emocionando cada coração que a escutava.

Os Dias não prestaram atenção aos fadistas que se seguiram. O ponto alto daquela sexta-feira foi a atuação de Amélia, que lhes ficou na memória muito depois de desaparecer da dela, semanas mais tarde. Mesmo quando, passados alguns meses, ela se esqueceu de quem era ou quando, ano e meio depois, partiu para a sua última morada, os seus descendentes ainda tinham essas recordações vivas no seu espírito, e que assim permaneceriam por muitos anos.

O seu nome não era Amália, mas a mulher de Alfredo foi, naquela noite, uma verdadeira Rainha do Fado.

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