CAPÍTULO 2 - FÁBRICA

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No capítulo anterior: Oton teve seu primogênito tomado pelo exército. Como forma de compensar financeiramente a perda, Tom Axel, seu patrão, lhe ofereceu uma promoção na usina elétrica em que trabalhava. A boa ação de Axel não aplaca a dor da perda, e Oton se sente infeliz e envergonhado dos filhos que lhe restaram. 

Kornik, ainda em 1869

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Kornik, ainda em 1869


No dia seguinte, a tristeza que cobria o casebre já começava a se dissolver na correnteza do dia a dia. Oton decidiu que era hora de parar de sofrer e se aprontou para o novo emprego. A esposa lhe entregou a refeição do dia com a delicadeza cansada de sempre. Como em um passe de mágica, a vida voltou ao normal, só que agora Oton caminhava sozinho para a fábrica. 

A fábrica era uma grande construção que se erguia nos limites de um lago ao norte do vilarejo. 

"Fábrica" é como todos os comuns a chamavam, mas Tom Axel disse uma vez que o termo correto era "usina" ou "geradora". De acordo com Tom, a energia elétrica gerada em Kórnik alimentava grandes indústrias em Varsóvia.

O andar térreo era um complexo de fornalhas onde os jovens abasteciam os fornos sob supervisão dos mais velhos. Tudo aquilo para refinar o combustível, pois a grande caldeira só era alimentada com carvão devidamente queimado e selecionado. Neste dia, Oton pela primeira vez subiu ao segundo andar da fábrica para conhecer sua nova função.

Era de se surpreender que tivesse chegado tão longe através do trabalho honesto. Condescendente ou não, seu patrão era um bom homem e a partir daquele dia sempre seria incluído em suas preces. As filhas de Oton não contribuíam com a renda familiar, e o débil Kazi, se não morresse de uma vez, continuaria só uma fonte de despesas. Se não fosse aquela promoção, voltariam a ser camponeses miseráveis, dependendo da pequena lavoura para comer. Mas graças a Tom Axel, a ausência do filho mais velho seria compensada. Enquanto subia as escadas de metal, Oton prometeu a si mesmo que trabalharia em dobro para demonstrar sua gratidão. Mesmo sendo um pouco velho, era abençoado com muita força e saúde.

— Oton! Então é verdade! — um colega gritou, subindo as escadas em seu encalço. Fez outro comentário mais baixo, que se perdeu no barulho do ambiente. O andar térreo já era bem barulhento, com o som de pás contra o carvão, gritos de ordem e as pequenas explosões nas fornalhas. O segundo andar, entretanto, era ainda pior, pois todo o alvoroço lá de baixo era abafado por uma sinfonia de assovios agudos, como centenas de chaleiras de apito esquecidas no fogo. Oton cumprimentou o colega com um aceno de cabeça e abriu a porta no topo da escada.

Uma onda de calor atingiu os dois homens enquanto entravam na sala pequena. O colega fechou a porta assim que passou e avançou em direção aos trajes de segurança pendurados em uma das paredes. Oton o imitou, vestindo o macacão que mais parecia uma mistura de armadura com escafandro, com um capacete que produzia um eco atordoante.

Seguiram então para a sala seguinte, ainda mais quente. Lá, duas pessoas irreconhecíveis sob as roupas de segurança operavam o painel de controle em cima de uma plataforma, elevada como o altar de uma igreja. Oton sentiu a pele esquentar até quase queimar enquanto subia a plataforma. Os colegas, por sua vez, estavam bem acostumados com tudo e trocavam cumprimentos bem-humorados.

Oton percebeu que gritavam para ele, mas conseguiu distinguir poucas palavras, e foi só observando que aprendeu como o painel funcionava.

Era coisa moderna, botões e alavancas em uma base de pedra resistente ao calor, que deveria proteger os circuitos contidos lá dentro. Letreiros móveis indicavam a velocidade de cada turbina. Seria trabalho de Oton impedir que houvesse muita disparidade entre elas, pelo que indicavam os colegas. 

Na frente da plataforma, uma vala funda se estendia por centenas de metros à frente. Dentro dela estava a fonte dos sons agudos: um enorme labirinto de tubos gigantes, que faziam curvas e passavam por cima uns dos outros, sempre retornando para a caldeira no centro. 

Vista de fora, a caldeira era só um cilindro de ferro gigante. Abaixo dela, a luz forte do fogo iluminava todo o ambiente.

Oton observou a estrutura gigantesca funcionando em toda a sua potência, o vapor correndo pelos canos e escapando nas intersecções. Era surpreendente.

Foi quando ouviu pela primeira vez um lamento desesperado.

"SOCORRO!"

Vinha lá debaixo, do labirinto. Oton olhou em volta e viu que ninguém reagia ao grito. Na verdade, os dois homens que cuidavam do painel durante a noite haviam se despedido e estavam indo embora. Seu outro colega continuava demonstrar pra ele a função de cada botão, gritando palavras indiscerníveis. Talvez fosse coisa de sua imaginação. Tão logo voltou a se concentrar no treinamento, ouviu de novo.

"ME AJUDE, POR FAVOR!"

Dessa vez as palavras foram altas e claras o suficiente para eliminar qualquer dúvida. "Eles trabalham aqui há tanto tempo, já devem estar meio surdos", pensou Oton, enquanto se afastava do colega e caminhava para a escada de mão que descia para o labirinto. Com certeza algum operário tinha ficado preso em cima de uma fornalha, ou se machucado fazendo a manutenção da caldeira. Assim que Oton pisou no chão ao lado dos canos fumegantes, ouviu mais uma vez.

"ME TIRA DAQUI!"

Parecia mesmo estar vindo de perto da caldeira. Em sua mente, formou a imagem de um uma criança arteira, caída no meio do labirinto, com medo de ser empurrada por uma nuvem de vapor caso tentasse se levantar. Oton pediu a Deus que a protegesse enquanto corria para o centro.

"SOCORRO! SOCORRO!"

Oton chegou ao centro, percorreu todos os caminhos em volta dos canos, contornou a caldeira duas vezes, mas não encontrou nada.

— Onde você está?! Me responda! Preciso saber onde está pra te tirar daí! — Oton gritou com toda a força de seus pulmões.

A voz que respondeu vinha de dentro da caldeira.

"AQUI DENTRO! ESTOU PRESO! POR FAVOR, ME TIRA DAQUI!"

Tomado pelo horror, Oton sentiu as pernas moles e a pouca visão que tinha através do capacete escureceu por completo. 

O Testamento de OtonOnde histórias criam vida. Descubra agora