A senhora Smith atendeu ao chamado de sua vizinha. Trouxe consigo uma solução alcoólica em um vidro e um retalho de tecido, com o qual absorveria o álcool. Colocou o tecido sobre a boca do frasco, que foi virado para baixo em um gesto rápido. E aplicou-o sobre as vias respiratórias. Ela tentou reanimar a mãe de Bernadete, apesar de identificar de imediato os sinais cadavéricos da senhora Herman. Repetiu o ato por precaução; e se voltou para a pobre garota, em pé, ao lado. Inclinou, pesarosamente, a cabeça e estendeu os braços. Bernadete não moveu um músculo. Embora soubesse há muito em si que a mãe falecera, custava acreditar em tal realidade. Assim, como quando os nossos sentidos podem produzir uma realidade subjetiva e fadada ao erro, buscou a ajuda da vizinha não porque acreditasse haver uma chance da querida mãe estar viva; mas porque precisava que o mundo pudesse confirmar, mesmo de forma cruel, a sua perda. Quando não pôde mais se conter, derramou-se em lágrimas e se jogou em direção aos braços que a acolhia. A dor pesava-lhe ao coração bem mais do que ao perder o pai, pois era uma menina. À época, não compreendeu o que a dor significava. O pai, como militar, raramente estava presente. Como aquela criança saberia o que a vida a tinha tirado? Entretanto, a morte da mãe trouxe-lhe tal compreensão. Colocou-a face a face com uma realidade impossível e incompreensível. Ela se soltou dos braços que a confortavam e se sentou ao lado do corpo gélido. Com os dedos, percorreu as linhas daquele rosto, que envelhecera tanto nos últimos anos. As rugas, as linhas de expressão, as queimaduras à pele pelo frio. Um gesto acompanhado por um olhar de ternura e de tristeza. Bernadete conduziu a mão aos cabelos da mãe e os afagou, como se os penteasse.
A senhora Smith comoveu-se com a cena e achou por bem ausentar-se. Como sabia que a garota não tinha a quem recorrer para tratar do enterro, colocou-se à disposição para ajudar a órfã no que lhe fosse possível. A moça agradeceu e a despediu sem se afastar da cama.
— Sou-lhe grata, senhora Smith. Pensarei, agora, em como farei para dar à minha mãe um funeral. Até mais.
Não havia em o que pensar. A família Herman se afundara em dívidas desde a morte de seu provedor, em batalha. Em vida, o vigoroso Senhor Herman contraiu um passivo muito além de seus vencimentos. Ele era, além de militar, um empreendedor. Gastou todas as economias, mais um título de promessa de pagamento, para comprar uma propriedade agrícola. Essa foi-lhe oferecida por um alto-oficial do exército agernornense. Seduziu-se pela fertilidade das terras em torno da fazenda. De fato, no princípio, houve ganhos relevantes; porém, a peste se alastrou por toda a região, de forma que ninguém mais se dispunha a trabalhar por ali. Sem mão-de-obra, as plantações diminuíram e as colheitas, consecutivamente. Assim, logo a propriedade caiu em ruína. O preço decaiu exorbitantemente, tornando-a inútil tanto vendê-la como mantê-la. Então, foi abandonada. O insucesso transformou o proeminente soldado em um homem desolado. O álcool passou a acompanhá-lo em toda parte. Recebeu inúmeras advertências e notificações por conta de seu problema. Contudo, não passavam disso, pois seus superiores conheciam o alto valor em combate do hercúleo Herman.
Após a morte do marido, a senhora Herman desfez-se de quase tudo de valor quanto possuía para pagar o restante da dívida de família. O direito em Agenor transfere a dívida do falecido para os familiares até a última geração. Com a venda de bens móveis e a indenização do reino pela morte em combate do marido, a mãe de Bernadete saldou grande parte da dívida. Entretanto, sobrara uma soma substancial com a qual ela se comprometeu a pagar pelo resto da vida. Ao fim dessa, a dívida não estava completamente paga, mas se aproximava da quitação. No entanto, como tal compromisso consumia quase toda a renda da família, outra dívida surgiu: os tributos do reino. Há muito a pobre senhora Herman não os pagava; e a dívida só não lhe foi colhida por compaixão do cobrador, que combateu junto ao marido dela em muitas batalhas. Porém, esse benfeitor, há dois meses, morrera; e o substituto descobriu as generosidades praticadas com a boa-fé de seu cargo. A descoberta deu-se após o novo cobrador de impostos passar um pente fino no trabalho do antecessor haja vista a urgência e a fome de recursos da guerra.
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Reino de Agenor
FantasíaEsse é um romance de fantasia medieval em que os capítulos, mesmo sob um nome só, estão divididos em começo, continuação e fim. A razão é tornar a leitura mais agradável. Agenor é uma cidade milenar localizada em uma península; e aquém da grande co...