Os apóstatas (continuação)

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— Bom, eu explico a última parte — respondeu Albert —. Fugimos em uma carroça de comerciantes. Eles pediram provisões em nosso monastério pra continuar a viagem que faziam. O sacerdote-mor pediu a nossa ajuda e a de outros monges. Leonard e eu aproveitamos um momento de distração e nos escondemos por baixo do lençol que cobria a carroça. Não havíamos planejado a fuga. Mas a oportunidade surgiu e a agarramos. A uma boa distância do monastério, procuramos um lugar adequado para ficar. Os vilarejos não pareciam seguros; aliás, onde havia rumor de pessoas, temíamos ser descobertos. Caminhamos sem rumo até chegar a floresta de Lugar Nenhum, na fronteira com esse reino. Famintos, até conseguimos caçar um coelho. O Leonard havia corrido atrás deles o dia todo, aí se sentou frustrado. Eu joguei uma pedra a esmo. Ele se levantou e disse que faria melhor. Eu o desafiei. O sortudo atirou a pedra e acertou o bicho atrás de uma moita. Ouvimos o grunhido e fomos conferir. O coelho não morreu, mas não conseguia mais fugir. Tivemos que matá-lo, por vontade própria. Acredita? Passamos alguns dias entre árvores e animais; e atentos às estradas que levam a vilarejos e cidades. Estava tudo indo bem. Até o Leonard ser picado por uma cobra. Eu capturarei e matei o animal: por algum motivo, achei que levar a cobra ajudaria na prescrição de algo. Chegamos a um lugar estranho, onde as pessoas nos olhavam sem discrição nenhuma. Nossa roupa não nos ajudava a andar despercebidos. Uma moça nos levou a uma curandeira. Se a vila era estranha, outro grau de estranheza apareceu quando entramos na cabana. Animais mortos, o odor de putrefação. Símbolos desenhados nas paredes. Plantas e raízes penduradas. Garrafas de vidro com soluções de várias cores a uma mesa. O grande Apóstolo Vagante talvez tenha me poupado, e agora não quero mais saber se o que vi atrás da cadeira onde a mulher se sentava era um crânio humano. Informei à curandeira o que ocorreu; e mostrei o animal. Perguntou se tínhamos como pagá-la. Tirei um anel do dedo e a entreguei. A mulher se levantou, pegou um frasco com uma solução transparente e me entregou. O Leonard tomou-a de imediato e saímos do lugar...

— Ele poderia ter morrido — disse Bernadete comovida.

— Porém, eis aqui, vivo e ainda horroroso. Ao sair da cabana, avistamos a moça que nos ajudou em uma conversa com outra aldeã. Nas palavras delas, "Acabo de encontrar dois idiotas. Um foi picado por uma cobra. O outro carrega o bicho como um troféu. Levei-os à feiticeira maluca. Lembre-me de passar lá, depois", "Por quê?", "A tal cobra não mata ninguém, a velha doida deve ter mais veneno nos dentes do que o bicho. A curandeira deve ter prescrito o vidro com água que dá aos malucos quando vão importuná-la".

— Não acredito! Voltaram pra recuperar o anel?

— Sim; mas, no caminho, vimos dois homens estranhos. Usavam um manto cuja fabricação é bem restrita. Eram dois guardiões-buscadores, um tipo de sacerdote utilizado para garantir a segurança dos templos. Casualmente, recebem a missão de encontrar apóstatas. Fugimos por trás de uma cabana. Alcançamos uma floresta e nos embrenhamos nela. A noite escura não nos permitia enxergar a um palmo. Acredito que os guardiões-buscadores não saíram em nosso encalço, porém até obtermos certeza, corremos sem parar. Só descansamos quando foi possível afastar qualquer receio de sermos capturados. Passamos a noite toda fugindo...

— Por que não enfrentaram os Buscadores?

— Não sabemos lutar, somos...

— Como não? Os tais guardiões-buscadores...

— Eles aprendem técnicas de luta corporal e com armas. Mas a arte é restrita a eles nos templos. Ou seja, não tínhamos a menor chance, se capturados. Certamente, arrancariam nossas cabeças e levariam nossas línguas.

— Por que levariam suas línguas?

— É uma forma de dizer aos Apóstolos-mores que trouxeram de volta o instrumento com o qual os apóstatas profanaram a palavra divina.

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