Bernadete (continuação)

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Bernadete nada sabia dos preparativos para o funeral nem havia parente próximo para auxiliá-la. A Senhora Smith se prontificou a ajudá-la, embora a promessa feita não tenha designado em quê. A jovem lembrou-se da oferta de sua vizinha e a procurou. A mulher estava em casa como se à espera de ser chamada. Morava naquele endereço pelo mesmo tempo em que morou, ao lado, a falecida. Viu Bernadete nascer, a sua infância, a morte do sr. Herman. Presenciou o empobrecimento dos vizinhos, a jovem e bela garota florescer; e agora, outra perda à família. A relação entre os Smith — a mulher e o marido e dois jovens que serviam ao exército — e os Herman nunca se aprofundou para algo mais que respeito e cordialidade. A Senhora Olívia Smith prestou o auxílio solicitado. De forma que, em poucas horas, apareceu à porta de Bernadete uma carroça onde jazia o féretro. Nesse ínterim, Olívia e a vizinha órfã prepararam a sala para receber a urna funerária. Trouxeram a pesada mesa da cozinha para a sala e estenderam sobre a superfície uma toalha roxa. Acenderam velas e as recostaram sobre os móveis, a circundar o perímetro. Haviam comprado jasmins; e as usaram para enfeitar às extremidades do móvel onde ficaria o ataúde. Após tais preparos, a sra. Smith se retirou para dar andamento ao enterro. Por ser casada com militar, a falecida adquirira o direito a um jazigo do lado ao do marido. Bernadete viu-se sozinha. Sentou-se com as mãos a apoiar o rosto. A alvura das pétalas de jasmim em torno das hastes amareladas chamou-lhe a atenção. Segurou uma das flores diante dos olhos e recordou a predileção da mãe pela planta.

A morte chega a qualquer ser vivo. Às vezes,rápida e indolor; outras vezes não. Quando o processo até ela apresenta-sedemorado, o espírito de quem acompanha os últimos dias do agonizante prepara-separa a perda. A relação com o indivíduo moribundo se modifica, de modo que se fica mais sujeito ao perdão. O coração se embebe de uma doçura singular, de que não se suspeitava. Se a pessoa a morrer já nos causou algum mal, há uma grande chance de nos embevecermos de compaixão. A presunção iminente da morte cria em nós um modo de nos prepararmos para a fatalidade. É como nos habituamos à sua presença.

Entretanto, quando a morte chega repentinamente, quem fica se sente traído por não dispor de tempo para se preparar. A fatalidade se torna mais impactante; e o impacto causado produz nos homens vários tipos de comportamentos. Há quem se insensibilize, não demonstrando qualquer reação à perda; e há os que perdem o controle sobre si, deixando que a dor os consuma por inteiro, como uma chama que se apaga nas trevas do quarto. A inesperada morte da sra. Herman causou à filha o previsto no segundo caso. No entanto, mergulhou tão rápido na escuridão de sua dor quanto foi o retorno a si. Isso se sucedeu, pois, em memória à querida mãe, ela precisou ser forte para lhe prestar as devidas honras. O que aconteceria após o esforço descomunal realizado, não sabia. O amanhã se tornara um dia de nevasca cuja cerração não permite enxergar a um palmo. O que faria da vida, sozinha e sem ter a quem se apegar?

O perfume de jasmim levou-a ao passado, a um dia em que, aos nove anos, conversava com a mãe, deitadas à cama. Na tarde desse dia, compraram jasmins ao mercado da praça central. Bernadete apoiara a cabeça sobre o ventre da mãe. As duas olhavam para o assoalho do teto, sob a luz da vela ao canto da penteadeira. A pequena divagava sobre algo que vira à Igreja. A mãe lhe afagava o cabelo, do qual exalava o aroma das flores que comprara. No caminho, a menina prendera uma em cada canto da orelha. Tirou-as somente há pouco, antes de se deitar.

— Filha, essa é a flor predileta da mamãe. Ao me casar com seu pai, ele enfeitou o altar inteiro de jasmins. Quando você se casar... — e foi interrompida.

— Eu não irei me casar, mãe. Eu quero ser um padre.

— Não vai se casar para se tornar um padre, menina?

— Sim.

— Mas padres são meninos. Por qual motivo quer ser um "padre"?

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⏰ Última atualização: Sep 16, 2020 ⏰

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