Hoathak IX

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Os ânimos em Sylben não eram dos melhores.

Hernie fora morto por sabe-se lá o quê dentro das paredes da enfermaria do templo. Enquanto isso, Ullaf criava as mais mirabolantes teorias — quase todas envolvendo o suposto mau-caratismo de Gerda e Regine e uma ainda mais suposta seita demoníaca — e Hoathak tinha que espremer seus miolos até conseguir uma resposta minimamente satisfatória — que apareceu pela boca de quem ele menos esperava:

— Mas se o assassino não matou ninguém, exceto o Hernie, ele deve ter escolhido o garoto por alguma razão. — Palin comentou na taverna durante o momento da comemoração fúnebre realizada pelo prefeito Norman. — É só ouvir o que o senhor Nald e o Damen comentaram da noite de vigília, ninguém que estava defendendo a vila morreu.

É óbvio! Como fui burro! Hoathak se recriminou mentalmente, dando-se um tapa forte em sua testa. O assassino fez um ataque para minar a moral da cidade. Deveria ser um batedor solitário que veio ver a situação do juiz. E vendo o que fizemos, deve ter atacado Hernie por qualquer acaso. Poderia ser a Irmã Regine, Waldbert, ou até a Madre, ou a senhora Gerda!

Animado com as possibilidades, o sacerdote logo voltou ao templo e foi ao seu quarto, escrever pelo menos estes pensamentos.

— Lordan... Teremos uma longa conversa quando voltar. — prometeu a si mesmo, contendo a raiva na voz.


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Os dias seguintes à morte de Hernie amanheceram nublados, carregados de nuvens escuras. Com uma leve dor de cabeça, Hoathak levantou com muita dificuldade.

O enterro do jovem acólito ocorreu até que emotivo, numa medida tida como ideal. Parecia que a morte de um jovem saudável como Hernie tornou até mesmo o intragável do Ullaf tolerável, mesmo que derramasse somente lágrimas de crocodilo.

Enquanto estava sentado na frente do templo, Hoathak se dava ao luxo de observar o dia-a-dia da vila enquanto Lordan não chegava. De dia, observar o cotidiano dos moradores. De noite, revezar a vigília dos moradores com a parcamente treinada guarda de Sylben: um dia de vigília para outro de descanso.

Numa das tardes em que vigiava o cotidiano da vila, um guincho alto nos céus chamou a atenção dele: um falcão cor de ferrugem descia num mergulho. Perto do templo, a ave adejou e adentrou no aviário do templo. Não muito tempo depois, Regine chamou por Hoathak. Levantou-se, espanou a sujeira e foi para dentro.

— Irmão, Ghaldar entrou em contato! — disse o acólito, entregando um pergaminho ainda lacrado.

— Irmã Regine, chame a Madre, por favor. — pediu Hoathak, quebrando o lacre e lendo com cuidado a mensagem. — Boas novas. O reforço está vindo.

Assim que ele terminou, a madre chegou, recebendo a carta e lendo-a.

Aos irmãos e irmãs do Templo dos Ghaldurhir na vila de Sylben;

No dia seguinte à data marcada nesta mensagem, a ajuda pedida na mensagem anterior foi enviada junto do Irmão Lordan, quem pediu formalmente o apoio. Conseguimos reforço com os irmãos e irmãs das outras ordens da cidadela, partindo daqui com todos.

Que O Radiante ilumine seu tempestuoso caminho;

Ghaldar, 32 de Sumasaar de 1398 DCC;

Santinnar, Prior do Templo Solar.

— Que os deuses nos abençoem em sua benevolência suprema. — disse a madre, extravasando alívio e algumas poucas lágrimas. — E ainda tivemos sorte de alguns bons reforços...

— Lordan saiu daqui que dia mesmo? — perguntou Hoathak.

— Dia vinte e oito. — Waldbert respondeu.

— Parece que ele levou uns quatro dias... — Hoathak começou a contar baixinho. — Ele deve chegar no dia um ou dois do próximo mês. Aliás, que dia do mês estamos mesmo?

— Trinta e três. — respondeu Regine.

— Precisamos avisar pelo menos ao senhor Norman. A ajuda chegando e prováveis problemas a vir.

— Que problemas? — perguntou Sereda.

— Com gente mais experiente chegando, os batedores que invadiram aqui e levaram a vida de Hernie devem aumentar as suas investidas.

— Como o quê?

— Três ou quatro dias atrás, enquanto eu observava o cotidiano da vila, notei que dois vizinhos discutiam com o senhor Norman sobre um ter matado as galinhas do outro. E ontem, aparentemente, alguém não soube contabilizar a forragem do gado que puxava o arado corretamente.

— Não entendi. — a madre estava perdida.

— Situações de cerco são combatidas de diversas formas. — respondeu Hoathak, sentando-se numa banqueta e arrumando a manga da camisa. — Mesmo que tenhamos erguido o muro da vila, nos trancamos aqui dentro, falsamente dando a nós mesmos a ideia de que os muros são protetores. Dependemos de nossas próprias forças para produzir nosso alimento e o inimigo sabe disso. Imagine pequenos e sistemáticos ataques que aparentam ser sem ligação e aos poucos minam a moral dos moradores.

Explicando aos três moradores do templo, Hoathak mostrou que a sua mente militar era muito bem treinada, do mesmo patamar que a mente de Lordan estava para os assuntos que se relacionavam à cura e a espiritualidade.

— E então, quando todos estiverem cansados e paranoicos uns com os outros, é só matar um mínimo de alvos que tudo ruirá por dentro, fazendo com que esta paranoia autoimposta faça com que familiar mate familiar, vizinho mate vizinho. — terminando de explicar, se levantou da banqueta. Foi até a porta e virou-se, pronto para dar um último aviso. — Acho relevante chamar pelo menos o senhor Norman e alguns homens de confiança dele para explicar o que pode estar acontecendo e então tentar uma contramedida.

Saindo de lá, o sacerdote não saberia o impacto que aquelas palavras imprimiriam nas mentes dos ouvintes.

As Crônicas de Melkos - Crias do AbismoOnde histórias criam vida. Descubra agora