Lordan IV

11 2 0
                                    


Enquanto as crianças dormiam, Lordan fazia um último diagnóstico em seu braço e Hoathak terminava a manutenção do equipamento de ambos — podia ser imaginação sua, mas o irmão parecia esconder algo que escondia nos pertences. Com o raiar do sol, chamou a todas as crianças e começou a conversar com eles, num tom de voz e expressão que evidenciavam o peso das ações que logo viriam.

— Crianças, hoje eu e o Hoathak vamos dar um fim no grupo que trouxe dor para todos vocês. — o peso das palavras ditas pelo clérigo foi o suficiente para deixar todos ali calados. — Quando eu e o Hoathak sairmos, todos vocês ficarão aqui escondidos e esperando por nós dois. Vamos esconder os cavalos e a carroça enquanto vocês se escondem no meio dos caixotes.

— Quando terminarmos, vamos chegar pela entrada que vocês mostraram. — Hoathak tomou a palavra. — Fiquem de olho no caminho para o rio. Eu e o Lordan vamos chegar por ali somente se alguém do grupo deles fugir pelo rio.

O almoço foi servido cedo, logo depois das palavras dos dois clérigos. As crianças comeram em silêncio, olhando de uns para os outros e para os clérigos. Lady Enora comia silenciosa, os seus sentidos atentos. Terminado o almoço, Lordan escondeu os dois cavalos enquanto Hoathak escondia a carroça. Os dois se equiparam com suas armaduras, armas e escudos, rezaram ao seu deus patrono pela proteção das crianças na sua ausência e saíram para o combate mais perigoso que teriam até aquele momento.

— Lembrem-se: ficarei só na saída do rio. Minha ajuda virá somente se estiverem para morrer. — disse Lady Enora antes de sair pela trilha do rio.

Graças às informações dadas a Hoathak, os dois clérigos puderam chegar até a entrada principal do complexo de cavernas usado de esconderijo pelos invasores. E como disseram, as sentinelas eram mais relapsas durante a hora do almoço, quando o sol estava mais intenso e aguardavam ansiosos pela sua vez de comer.

— Lembre-se: precisa ser rápido e letal. — repetiu ao irmão. Hoathak rolou os olhos pela preocupação exagerada.

— Só olhe. — retrucou, deixando a espada frouxa na bainha.

Esperou a sentinela mais próxima mirar o longe e então partiu do esconderijo a toda velocidade. Passou como um vulto pela primeira sentinela, assustando-a, e atacou rapidamente a sentinela mais distante, impedindo o homem de sair dali e avisar os comparsas. Afiado em seus instintos de luta, Hoathak virou-se a tempo de deter a lâmina inimiga com a guarda da espada, aparando o golpe e conseguindo encaixar um murro no nariz do homem. Desorientado, foi presa fácil para a espada.

— Exibido. — disse Lordan, vendo Hoathak inflando o ego enquanto limpava a espada com a camisa de um dos abatidos.

Caminhando cuidadosamente, os dois diminuíam a distância entre o grupo de inimigos e eles. Perto do lugar onde teriam uma melhor linha de visão, os dois clérigos viram o complexo de cavernas com suas entradas todas no recuo do paredão alto, além da margem do rio, nem tão distante quanto achavam.

Na área mais ampla daquele recuo que as cavernas faziam, os jovens sacerdotes notaram que grande parte dos membros do bando estava ali. Precisariam de um milagre que agisse na maior área possível. Sentiram o calor do Deus-Sol sobre eles, seu toque divino. Ergueram ao céu a Insígnia do Sol e oraram pela Luz d'O Radiante, expurgadora da maledicência:

— Radiante, que a sua Luz expurgue os meus inimigos! — em sincronia, o milagre manifestou no local um pequeno ponto de luz, explodindo num fulgor chamejante de energia divina pura.

O fulgor explosivo então transmutou do clarão em chamas alvas, lambendo todos na área visada pela oração conjunta. Os infelizes que estavam na tormenta flamejante foram tomados entre a fúria divina e os que não conseguiram fugir a tempo morreram carbonizados pelas flamas alvas causticantes.

Aproveitando o caos instaurado, Lordan e Hoathak seguiam até o meio da entrada, barrando possíveis fugitivos e aproveitando a cobertura dada por Lady Enora, ambos de armas em punho: Lordan com a maça, Hoathak com sua espada.

Para que dois clérigos dessem conta de um grupo sete vezes maior, um ataque surpresa era necessário, onde somente um terço deles sobreviveu. Três dos sobreviventes foram correndo do riacho e encontraram seu fim oculto.

Aliviado de verem as flechas de Lady Enora dar conta dos fugitivos, os clérigos começaram a agir contra o restante do grupo. Por hábito, Hoathak disparou para cima dos desesperados com sua espada em punho, deixando um deles fugir e dando cabo dos outros dois numa sequência rápida de golpes com a lâmina. O terceiro foi detido facilmente por Lordan com um balançar quase despreocupado da clava metálica.

Derrotados os três homens, palmas foram ouvidas. Os dois clérigos se viraram e notaram um homem alto e esguio, de cabelos castanhos ensebados e com a face coberta de cicatrizes que desciam como dedos escuros até o seu pescoço.

— Meus parabéns. — debochou o homem, a voz rouca e arrastada; um sorriso torto marcava ainda mais as cicatrizes em seu rosto. — Vocês deram cabo de todos os nossos subalternos. Vieram aqui pelas mulheres?

Mulheres? Lordan se perguntou emudecido. Quando olhou para o irmão, notou que ele tivera o mesmo pensamento. O homem notou que a dúvida sobre o assunto os pegou de surpresa.

— Vejo que a cadela fujona não conseguiu chamar por ajuda no povoado mais próximo... — o homem disse como se sentisse aliviado. — Sabe, se vocês forem legais comigo e meu parceiro, podemos deixar vocês provarem umas ali dentro, sabe, pagando bem...

A proposta fez Lordan fechar sua expressão, apertando ainda mais firmemente o cabo de sua arma.

— Ora, ora... O que o coroinha aí vai fazer se eu contar que matamos umas, estupramos outras e vendemos quase todas como escravas para os nobres mais depravados? — o homem perguntou tentando derrubar a concentração de Lordan.

— Radiante, que minha mão guie os raios do Sol! — Lordan orou colérico a plenos pulmões por mais um milagre, lançando línguas do mesmo fogo pálido para o homem, que se esquivou de duas delas, mas a terceira o atingiu, queimando o braço direito.

— Nada mal... — desdenhou o homem. — Mas acho que temos formalidades. Eu sou Ramsey, líder desse grupo de malditos. E vocês?

— Um cadáver não deve saber o nome de alguém. — Hoathak respondeu segurando o cabo de sua lâmina com mais firmeza e indo para cima do homem, acompanhado de Lordan.

Espada e maça dançavam velozes, rasgando e chiando o ar entre os dois, enfrentando o homem que empunhava duas espadas curtas e as usava magistralmente para defender-se. Usava-as numa pegada invertida, conseguindo ora um corte aqui, ora uma estocada ali, ferindo os clérigos e arrancando ainda mais raiva de ambos.

Os golpes da maça eram sempre evitados no último instante, aliviando o impacto. A espada de Hoathak também não surtia tanto efeito assim: a folha seguia seu rumo, inexorável e letal, para ser detida pela cruzeta de uma das espadas inimigas, pelo cabo e, às vezes, até pelo pomo já maltratado.

Enquanto o combate ia se prolongando entre os três, Lordan e Hoathak afundavam seus sentidos cada vez mais para a pequena região entre os três. Aquele homem era o seu inimigo mais forte até então. Esta mesma concentração nublou seus sentidos mais periféricos, fazendo com que não registrassem o som do puxar de um gatilho nem do leve som da tensão de uma besta subitamente dissipada.

A única coisa que notaram foi o virote estranho que estava ali, diante deles, a madeira estranhamente densa em sua cor preta e a ponta metálica e as penas ainda mais escuras. O projétil, estranho aos clérigos, fez o homem chamado Ramsey reagir, preparando algo parecido com um bote com ambas as espadas. Tão repentinamente quanto o projétil que surgiu, trevas densas e opressoras cobriram um domo ao redor dos três.

Lordan sentiu duas mordidas rascantes em seu abdômen. Agindo por reflexo, conseguiu segurar apenas uma das lâminas que aliviavam a mordida em sua carne. Ergueu por reflexo a sua clava e usou outro de seus milagres de devoto do sol:

— Radiante, que a Luz da alvorada dissipe as trevas! — a cabeça da clava metálica brilhou como a Estrela da Manhã, conjurando luz em anéis luminosos, expandindo-se e dissipando as trevas. A luz sacra voou poderosa para cima do inimigo, queimando a carne de Ramsey com a energia luminosa.

Soltando a mão inimiga, Lordan caiu ajoelhado ensanguentado enquanto o inimigo recuava. Aproveitando o movimento, Hoathak engajou-se em combate, dando espaço para que Lordan conseguisse curar a si mesmo.

As Crônicas de Melkos - Crias do AbismoOnde histórias criam vida. Descubra agora