EP #18

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Há sempre um sentimento estranho e desconfortável quando nos deparamos com algo que não podemos mudar, e foi esse sentimento que me tomou assim que vi ele pular daquele prédio, primeiro o susto repentino, depois aquela sensação de congelar no canto e sentir que seu cérebro parou de funcionar e posteriormente o desespero pra ver o que tinha acontecido, eu passei pelos três estágios em questão de segundos mas para mim pareceu horas.

Corri pelas escadas começando a pensar que seria mais rápido chegar ao chão pulando da janela, os degraus pareciam não ter fim, e se eu estivesse minimamente raciocinando eu teria pegado o elevador, mas a euforia tomou conta de mim e eu só pensava em chegar até ele, não importava como.

Sim eu sei que ele não estava morto, e que provavelmente não sentiu dor porque o processo da queda desfaleceu o corpo dele, mas ainda assim era a primeira vez que eu me via em uma situação como essa, a maioria das pessoas tem uma espécie de curiosidade mórbida, de ver pessoas em situações terríveis, com o braço esmagado, decapitado ou morto, só pra ver como era, eu definitivamente não era esse tipo de pessoa.

Os fatos a seguir passaram bem rápidos, eu pedi para acompanhar o corpo dele até o local onde ele teria que passar pelo processo de trazê-lo de volta, foi mais do que angustiante ver ele ali imóvel e pálido como a parede daquele lugar, eu passava horas estudando suas reações e por mais mínimas que fossem eu percebia, o modo como sua bochecha tremia as vezes ou quando sua pálpebra mexia repentinamente, talvez fosse só a ansiedade para que ele acordasse mas eu passei a conversar com ele na esperança dele dizer qualquer coisa, provavelmente ele não lembra de nada, constatei isso pelo modo como conversamos logo após o seu despertar, porque se ele lembrasse iria tirar sarro de mim, contei todas as coisas mais vergonhosas da minha infância e adolescência, no começo era pra matar o tempo e afastar o tédio, mas depois acabei gostando de falar sobre qualquer coisa, contei do dia em que sem querer fiquei preso no banheiro do quarto dos meus pais enquanto procurava remédios que na época eu jurava que eram balinhas com gostos especiais, eu era uma criança com a imaginação muito fértil, falei sobre todas as vezes que quase me quebrei todo andando de bicicleta, equilíbrio não era meu ponto forte, falei muitas coisas das fases ruins do colégio, dos amigos breves que eu tive, até mesmo do quão eu fiquei secretamente animado pra saber quem era a pessoa que havia me convidado para a ópera naquele dia e de como eu fiquei tímido e feliz em segredo por pensar que ele estava interessado em mim, isso antes de descobrir o real motivo para estarmos ali, essa era a parte que eu torcia para que ele não se lembrasse, porque eu me arrependi assim que terminei de contar.

Nos dirigimos muito desanimados até a tal praça, não era um dos meus lugares preferidos, o cheiro era estranho e as árvores sempre me lembravam aqueles filmes de terror onde o mocinho sempre sumia do nada e só aparecia morto da forma mais bizarra possível. Olhei de relance pra Brian que não estava nem tentando disfarçar sua raiva por mal ter voltado e já ter que fazer alguma atividade absurda.

- Ele só pode estar brincando com a gente - Falou quebrando o silêncio.

- Não tenho dúvidas quanto a isso.

- Tenho certeza de que a próxima tarefa será pior - Disse chateado.

- Espero que esteja errado.

- Está se sentindo bem pra uma nova possível luta? - Perguntou Brian dessa vez olhando pra mim.

- Era pra eu estar fazendo essa pergunta, foi você que acabou de voltar a vida - Ele sorriu levemente com o meu comentário.

- Mas eu dormir dias em uma cama confortável, foi você que ficou no sofá duro e tendo péssimas noites de sono, sei o que estou dizendo, eu odeio aquele sofá.

- Está tão na cara que não dormi direito? Devo estar horrível então.

- Eu não disse isso, até porque não tem como te chamar de horrível, seria uma mentira absurda - Agradeci pela péssima iluminação da praça, porque a queimação no meu rosto queria gritar que eu estava vermelho - Olha ele ali - Suspirou profundamente, forcei a vista para enxergar o ceifador um pouco a frente.

Nos aproximamos dele, seu manto estava reluzente como sempre, e ele parecia bem sério, olhei rapidamente ao redor e não vi nada que indicasse qualquer atividade para fazer, e até imaginei que teríamos que lutar corpo a corpo mais uma vez.

- Boa noite Roger, boa noite Brian, parece bem novamente, espero que esteja se sentindo melhor.

- Estou sim obrigado - Disse rápido com um tom irônico.

- Que bom, Roger se mostrou uma ótima companhia, fico feliz em ver que estão se dando bem, parece que estavam destinados a se tornarem amigos, só lamento por não ser a hora certa para isso - Fiquei sem entender o que aquilo significava e Freddie percebeu nossos olhares confusos - Há uma coisa que precisam saber, mas que não devem saber, por isso chamei vocês aqui, porque estou prestes a quebrar uma regra, ninguém pode saber disso, principalmente a ceifa.

- Não estou entendendo - Brian disse.

- A conclave foi antecipada, houve algumas mudanças, algumas muito desagradáveis - Eu estava começando a ficar nervoso, tentei manter a calma para ouvir até o final - Como sabem havia exceções na lei que permitiam o ceifador ter mais de um aprendiz se fosse do desejo dele, bem, a nova gestão entrou com uma reivindicação, que infelizmente foi aprovada, ou seja, a prática foi proibida.

- Isso significa que um de nós vai ter que sair do treinamento? - Indagou Brian.

- Não, isso é impossível, vocês já receberam os braceletes de aprendiz e seus familiares a imunidade anual, logo estão presos ao treinamento até a prova final.

- E como resolvemos isso se tecnicamente estamos presos? - Dessa vez eu perguntei.

- Já foi resolvido, fui obrigado a fazer um acordo - Ele suspirou, pela primeira vez o vi hesitante quase como se não quisesse falar - O acordo da ceifa foi direto, só há uma vaga, lamento dizer isso mas vocês irão competir entre si, dessa vez de verdade, o próximo teste será em menos de um mês, e como eu disse só existe uma vaga.

- Como assim uma vaga, o que acontece com quem perder, o que isso significa? - Questionei confuso.

- Significa que um de nós não vai perder só o anel e o título, não é? - Brian falou ríspido - O que o senhor está demorando pra contar? - Comecei a ficar mais trêmulo ainda.

- Um de vocês irá receber o título de ceifador, quanto ao outro...Será coletado definitivamente, se ainda não ficou claro o suficiente, o ganhador coleta o perdedor - Senti meu estômago revirar, e meu corpo amolecer ao ouvir aquilo, não sabia como ainda estava de pé - Lamento não posso mudar isso, está além do meu alcance.

- Isso é cruel - Minha voz saiu rasgada e denunciava meu início de choro.

- Por que te obrigaram a manter segredo? E quem teve essa ideia horrenda? Achei que todos os ceifadores eram justos! - Brian esbravejou.

- A ceifa não mataria um inocente, isso é errado - Proferi indignado.

Ele olhou rapidamente para os lados, dessa vez com uma expressão triste, e se aproximou mais.

- Estão bem perto de entender o que todos tentam maquiar...

A ceifa não é um reino imaculado.

Muito menos justo.

O aprendiz de ceifador •|Onde histórias criam vida. Descubra agora