Consciência da consciência (Parte 6)

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  Voltamos no carro, cansadas. Ou pelo menos era como eu estava me sentindo enquanto contemplava o meu pulso. No de Susie, uma pintura igual.

  Minha mãe liga o som do carro e sintoniza numa estação qualquer. Uma música começa a tocar junto à estática e eu a deixo no plano de fundo da minha mente, que viaja pelos momentos do dia de hoje.
Eu não consegui aproveitar enquanto estava lá e não estava. Agora só fico com as memórias da roda de toré e da pintura com genipapo, que Susie diz ter cor do céu em noite de verão. "Se se esforçar um pouco, dá para ver as estrelas dentro do pote", ela disse.

— Ela é linda, não é? — Ela me pergunta, aninhando a cabeça no meu ombro e me puxando para a realidade.

— Uhum. Coisas da minha avó.

— O que significa? Ela disse que você saberia.

Me lembro de Susie aos cochichos com vovó, parecendo implorar por alguma coisa que eu não podia saber. Um segredo. Que agora ela revelara a mim: queria entender o significado do grafismo.

— Significa que você está amando. Mulher amando. — Eu sinto Susie sorrir sem nem mesmo olhar.

— Eu estou amando... — Ela diz, como se só houvesse se dado conta disso agora, enquanto se afundava em admiração. Eu podia ver nos olhos dela sem sequer ver os olhos delas. E eu acho que amor é isso.

— Chegamos, meninas. Na sua casa, Susie. — disse minha mãe.

— Certo. Obrigada, tia.

  Combinamos de não ir para a aula hoje. E nem daria tempo. O horário de pico parece já ter começado.
Me despeço de Susie com um beijo e volto para o meu mundo, olhando ela pelo retrovisor até o carro virar a esquina.
Amanhã eu tenho terapia com a Lindsay. São tantas coisas que eu preciso falar que nem sei por onde começar. Ou talvez eu comece por onde eu sempre começo:

"Eu sou louca?"

  Por tudo que eu conheço sobre loucura, eu sei que a resposta para essa pergunta é positiva. Não teríamos nós, um pouco de loucura?
A loucura que acomete as mulheres lésbicas, as que não querem casar, as herdeiras. Todas mantidas, enclausuradas, em manicômios porque não são como a sociedade e seus maridos esperavam. De qualquer forma, eu sou louca. Não pelo meu CID ou segundo o DSM, a OMS...
Eu sou louca mesmo que eu não tivesse nenhum problema psiquiátrico. Porque eu sou lésbica. Eu rompo com todos os padrões binários, patriarcais e de gênero por gostar de pessoas do mesmo espectro que eu.
Então, quando eu penso que amar Susie é um ato de loucura, é sobre isso. É literal.

Embora não seja essa a loucura que me faz ficar obcecada por assuntos e pessoas. Ou que me distraia no meio da aula, me puxando para a morte da minha consciência. Não é essa a loucura que fez minha mãe me encontrar babando no chão um dia.
"Eva Diáspore é doida de pedra", as pessoas dizem. Não confiam em mim para fazer coisas que todo mundo faz. Me deixam sempre sob custódia por esse motivo.

Mas o foco não é esse. Eu fugi às ideias. Amanhã eu tenho terapia.

              ****

Escuto a campainha da sala de Lindsay e ela me convida para entrar.

— Eva! Como é bom te ver.

Sempre sorridente. Até às oito horas da manhã. Como ela consegue?

— Igualmente. — Dou meu sorriso amarelo, meio sem sal.

— Como passou esses dias?

— Ah, bem. Acho... eu tenho várias novidades.

— E quais são elas?

— Eu estou namorando. — Ela me dá um sorriso e eu não pude evitar sorrir também — A Susie, minha melhor amiga.

— Que incrível, Eva! Susie é aquela das mechas brancas no cabelo, não é?

— Sim!

— Olha, ela é linda, viu? Parabéns a vocês duas.

Não começamos pelo assunto loucura. Isso é bom.

— Eu também fui visitar a aldeia. As novidades são essas.

— Olha só! Eu percebi a pintura no seu pulso. — Lindsay aponta com o queixo em direção às minhas mãos, no meu colo.

— Grafismo.

— Isso!

Nada do assunto "loucura". Nada do assunto "louc...

— Eu tenho me sentido louca. — Tarde de mais — Como se isso fosse um estado de espírito.

— E como é esse tal estado de espírito? — Ela pergunta.

— É só que... eu tenho medo, sabe? Como eu vou ser uma profissional exemplar se o meu exemplo é a esquizofrenia? E eu falo tanto sobre psicofobia que sou psicofóbica comigo mesma.

— As pessoas tem condições, Eva. Alguns mancam de uma perna, por exemplo. Outras pessoas tem transtornos psiquiátricos que podem ser controlados. E tá tudo bem! — Foco nela cruzando as mãos. — Já tivemos centenas de conversas como essa.

— Eu sei. Desculpa. Mas eu sinto que não passo confiança e isso dói. Eu fiquei mal numa aula onde mencionaram o estágio e pensei que fosse morrer. Mas depois ficou tudo bem. Enfim. Eu sinto isso.

— Olha, vamos pensar assim: quando você vai no médico, você pergunta se ele tem alguma doença? Alguma patologia? Comorbidade?

Faço que não a cada pergunta e enfim verbalizo:

— Não.

— Por que você acha que com você, Eva, vai ser diferente?

— Eu não sei. E se descobrirem?

— Vai haver preconceito. Eu não vou mentir pra você. Muita gente pode não querer ser seu paciente. Mas...

— Mas...?

— Muita gente pode te ter como fonte de inspiração. Podem pensar: "poxa, ela tem essa condição mas está trabalhando e é excelente no que faz, então isso quer dizer que eu também posso."

— É verdade... — admito — mas não é só isso. Ontem eu tive um insight.

— E como foi?

— Eu sei tanto sobre loucura, né? — Ela faz uma expressão com as sobrancelhas arqueadas que eu só posso pensar que se ela falasse com a boca, seria "Oh se sabe. — Eu sei também que todo mundo tem algo que, para os padrões de normalidade, também seria loucura. Até coisas simples, como só amar outra mulher. Isso é tão forte que a própria ideia de ser louca se mostra uma completa loucura. Ninguém é cem por cento normal, né? E tá tudo bem por isso. Eu consigo ver isso agora, mas antes eu não conseguia. Obrigada.

Lindsay aplaude.

— Seu raciocínio foi impecável, Eva. Parabéns.

— Obrigada.

— Bom, nosso tempo terminou, infelizmente. Mas eu estou feliz com o seu avanço de hoje.

Nós duas nos abraçamos.

— Aliás. Eu tenho estágio hoje e finalmente me sinto pronta. Obrigada. Mais uma vez.

Aceno para ela, que fecha a porta devagar enquanto eu vou esperar o elevador.

Hoje. Eu nem havia tomado consciência disso, dessa palavra. "Hoje". E é hoje ou nunca mais.

Para Onde as Moscas Vão Quando AnoiteceOnde histórias criam vida. Descubra agora