Peônia

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Eu quero que você perceba
Quando eu não estiver por perto
Que você é especial pra caralho
Eu queria ser especial
Mas eu sou uma aberração
Eu sou um esquisitão
Que diabos estou fazendo aqui?
Eu não pertenço a este lugar

(Radiohead – Creep)

Quando Natsu finalmente acordou, não estava mais no trem. Ainda era madrugada, seus olhos ardiam e sua cabeça pulsava violentamente, então levantou-se devagar, arrastando consigo o lençol; estava apenas de cueca, num quarto de hotel de uma cidade desconhecida e não havia nenhum rastro da sua companheira de viagem... Exceto, talvez, por uma xícara de chá frio deixada sobre a mesa e pela chuva, devastadora e triste, que caía do lado de fora.

Flashes da noite anterior voltaram como um murro — o casamento, a discussão, as mãos frias entrelaçadas nas suas, a estranha mas confortável sensação de ser carregado nas costas dela no meio da tempestade. Merda. Bagunçou violentamente o cabelo e, tentando engolir a frustração, se enfiou no chuveiro; tinha xingado, chorado e feito perguntas ridículas sobre nunca mais amar alguém e viver como um eremita pelo resto da vida... E, fingindo não ouvir os soluços abafados e o cafuné cada vez mais trêmulo, tinha pegado no sono usando as pernas de Juvia como travesseiro.

Engoliu os próprios suspiros, deixando a água fria lavar o rastro das lágrimas secas de seu rosto; não deveria estar ali. Tinha passado os últimos dois anos evitando-a, fingindo não vê-la chorando pelos cantos na guilda, ignorando a dor estampada nos olhos azuis; olhar para Juvia era como se encarar no espelho, e não queria descobrir que a máscara de melhor amigo que se esforçava tanto para manter era tão frágil quanto a dela. E agora, mesmo que se esforçasse para ser um ombro amigo, um porto seguro, mal conseguia olhar para ela sem chorar. Porque, no fundo, estava cansado de manter um personagem e sabia que, mesmo que tentasse esconder a verdade, Juvia sempre seria capaz de enxergar o quão quebrado estava. Não queria estar ali; não precisava de um fantasma remoendo seus sentimentos e mexendo em passados que só queria esquecer.

Mas não queria voltar pra casa, e o tom macabro com que Gajeel pediu para trazê-la de volta continuava martelando em sua cabeça. Pinga, pinga, gota. O cheiro de mar nos cabelos azuis, os olhos opacos, a voz vazia repetindo, como uma maldição, pinga, pinga, gota; ela nem lembrava a mesma Juvia esquisita e grudenta que via com Gray, nem a mulher que encontrava chorando no banheiro da guilda em dias de festa. Sem o personagem de ex-namorada legal, não parecia ter sobrado nada ali dentro; ela parecia...

Morta.

Um raio deixou tudo no escuro e, quando a sombria imagem do passado de Juvia surgiu em sua mente, Natsu finalmente percebeu que algo estava errado. Que merda, Juvia! Saiu correndo do banheiro, vestindo às pressas a calça social, até notar, apoiado num vaso de flor ao lado da xícara, um bilhete. "Vou caminhar um pouco na praia, não me espere", as palavras apressadas diziam, mas algo entre aquela tempestade e a arrepiante peônia roxa deixava tudo com um estranho ar de despedida.

Merda. Gajeel estava certo. Ela não tinha intenção nenhuma de voltar.

Talvez estivesse exagerando, mas já tinha visto com os próprios olhos o quão deplorável e vazia ela se tornava sem Gray, então pegou a camisa e, sem pensar duas vezes, saltou pela janela do segundo andar. A vibrante cidade de Hargeon surgiu, cheia de memórias, em seus olhos, mas Natsu não tinha tempo para nostalgias inúteis; agora, a lembrança do corpo semiconsciente e da voz destroçada chamando-o de Gray-sama em meio a uma vila abandonada o deixava aterrorizado o suficiente para simplesmente correr em direção à praia. Porque Juvia sempre dizia que Gray era tudo para ela, a vida dela... Não duvidava que ela estivesse falando a verdade.

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