II

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O historiador apenas desejou uma noite de paz antes de dormir. Contudo, ouviu ruídos estranhos. Abriu os olhos e percebeu que não estava mais em seu quarto. Simples assim. Sua cama king-size fora substituída por uma de solteiro. Havia mais uma sobre sua cabeça e outras duas na parede oposta, ocupadas por pessoas que ele nunca viu na vida.

Luiz pulou da cama sobressaltado. Balbuciava sobre ter sido raptado ou algo parecido, mas rejeitou logo essa possibilidade. Não parecia um sequestro. Talvez aquilo fosse uma pegadinha, uma câmera escondida de algum programa idiota de TV.

Mas quem teria planejado algo tão irresponsável? O síndico?

Luiz então observou a pessoa deitada na cama de cima. Era um velho magro e barbado. Usava uma veste de dormir que muito se assemelhava a um saco de arroz de mil novecentos e antigamente. O velho, ao ver que estava sendo observado, mirou o historiador fazendo parecer que pouco estava afim de uma conversa.

– Está se sentindo bem, ragazzo?

– Não sei – respondeu Luiz se sentindo perdido. – Não sei de mais nada, pra falar a verdade. Er... por acaso viu como cheguei aqui?

– Quando entrei nesta cabine você já estava todo adormecido aí.

– Merda! E que ruído é esse? Para onde me trouxeram, afinal?

– Dio mio, ragazzo. Deve ter bebido bastante, não? Você está em uma cabine da terceira classe. Por isso está a ouvir esse barulho. É o som das máquinas que movimentam este barco.

– B-barco?

– Oh, che diavolo, cansei de ti – injuriou-se o velho italiano e se deitou de costas para o colega de quarto.

Luiz começou a se preocupar. Olhou para si e viu que suas vestes foram trocadas por um modelo para lá de antiquado. Entre os pares das camas havia um lavatório antigo e familiar. Vigas e encanamentos se viam expostos na parede da frente. O rapaz teve a angustiante certeza de que já tinha visto essa bendita cabine em algum momento da sua vida.

Decidido a descobrir o que estava acontecendo, ele avançou porta a fora e deu de cara com um vasto corredor movimentado. Pessoas trajadas como Luiz, se esbarravam para chegar em seus objetivos. Diversas línguas estavam sendo ditas, mas era perceptível que não havia uma viva alma dotada de riquezas materiais naquele espaço.

Luiz ignorou o fator irrelevante. Desconfianças severas ganhavam um espaço cada vez maior em seu interior enquanto ele disparava pelas primeiras escadas que encontrara. Fingiu não ver homens de preto aqui e ali e seguiu direto por uma portinha com escotilha por onde saíam dois rapazes de suspensório para a luz do dia. Sentiu de pronto um forte vento batendo em seu rosto.

Estamos nos movendo – ele resmungou nervoso para si.

Luiz caminhou vagaroso sobre o que ele estava certo de que era um convés e seus olhos foram preenchidos pelo extensivo oceano que o cercava. E não era preciso ir da proa à popa do navio para contabilizar 269 metros de comprimento.

O historiador boquiabriu-se de perplexidade. Ele viu-se navegando no Titanic. NO TITANIC! E em seus pensamentos conturbados, ele se imaginava partilhando do mesmo destino das 1500 pessoas que morreram quando o navio submergira.

Temendo por sua vida e sanidade, o rapaz deu meia-volta sem saber muito bem para onde ir e como faria para abandonar o navio e tal ação era prioridade máxima. Parou de chofre ao focalizar uma figura conhecida do outro lado do convés. Aproximou-se para averiguar. Era uma moça trajada em um belo vestido longo. Usava um pomposo chapéu de babados sobre a cabeça loira. Olhou para Luiz ao perceber sua aproximação.

– Como não imaginei antes? – Luiz ria de nervoso. – Isso é tudo culpa sua, não é? Mas preciso admitir que você foi criativa.

– Culpa minha? – perguntou a senhorita, em resposta. Sugeria confusão em sua fisionomia. – Do que está falando, senhor?

– Vamos, Ingrid, pare de brincadeiras. Há uns segundos atrás acreditei que eu estava mesmo no Titanic, quase que infartei! Como conseguiu me dopar para me trazer aqui? Melhor! Como eu nunca soube desta réplica? É tão real que assusta!

Luiz encarava a moça incisivamente aguardando por respostas. Ela, por sua vez, enrugou a testa como que a tentar entender sobre o que aquele rapaz anônimo estava falando.

– Desculpe – respondeu a senhorita. – Acho que me confundiu com alguém. Meu nome é Helen Candee, sou da primeira classe. Conjecturo que você pertença a terceira, a julgar por como está vestido. Nada contra, é claro. Este é o lado do convés que corresponde a terceira classe, pelo visto. É extraordinário.

Luiz tomou distância da sósia de sua secretária o máximo que pôde. Afastou-se mais quando viu que ainda estava perto. Sentou-se em um banco de madeira com a tensão pulsando forte em suas têmporas. O rosto enterrado nas mãos, ele acabou não percebendo que alguém se sentou ao seu lado – até que esse alguém cutucou seu antebraço.

– Como está, ragazzo?

– Você outra vez?! – exclamou Luiz, enraivecido. – Não quero ser grosso, mas não estou afim de companhia! Estou... bêbado, lembra?!

O historiador ia se levantando quando o velho o puxou pela blusa.

– Argh! O que diabos quer de mim?

– Você está muito tenso, não precisa disso. Vou falar no seu comum dialeto para facilitar seu entendimento, historiador.

Luiz pôde sentir sua boca se entreabrindo.

– Como...? Um momento. Foi você que me trouxe para cá – não era uma pergunta.

– Foi sim – cedeu o velho sem a menor culpa. – Meu nome é João, muito prazer – ele estendeu a mão e sorriu. – Bom, João é meu primeiro nome, sabe. Tem gente que prefere me chamar de Pestana, por motivos óbvios. E acredite ou não, sou um ser bem poderoso com deveres sagrados a cumprir. Logo, foi minha magia que te trouxe até aqui.

Furioso, Luiz ignorou a mão enrugada estendida a ele.

– O que? Vamos ser amigos agora? – indagou ele entredentes. – Me dê apenas um motivo para eu não te enforcar aqui mesmo, Sr. Poderoso!

– Basta um ato de violência e você será preso pela tripulação do navio sabe-se lá por quanto tempo. E acho que prisioneiros não terão prioridade na hora que estiverem colocando pessoas nos botes quando este navio estiver... bem, você sabe.

O pânico de outrora mais uma vez reassumia a expressão de Luiz. O velho não parecia de brincadeira.

– Então estou mesmo no Titanic. Seu demônio maldito! Me fez... voltar no tempo?!

– Mais ou menos.

– Mas como você fez isso?!

– Já disse que foi por magia, mas vamos ao que interessa. Como já percebeu, você agora é um passageiro da terceira classe do navio. E acredite quando digo que toda sua pose altiva não funcionará por aqui, então exercite seu autocontrole.

– Por que está fazendo isso comigo?!

– Porque eu andei te observando, Luiz Amaral, e por isso designei esta viagem pra você. Não sei como vai se virar, mas te desejo boa sorte.

Sorte?!

– Hum... com licença? – chamou a senhorita de antes. – Desculpe, com quem o senhor estaria falando?

Luiz se virou para ela e depois para o banco vazio ao seu lado.

Pestana havia desaparecido.

– Você se afastou tão depressa – disse Helen, sem perceber o pânico expressado por Luiz. – Queria pedir um favor, se não for incomodar. Ainda existem áreas da terceira classe que eu gostaria muito de ir visitar, qualquer dia. Soube que são maravilhosas neste navio. Eu pediria a um membro da tripulação para ser meu guia, porém acredito que haveria certa relutância da parte deles.

Luiz não a estava escutando tão bem. Confirmou o pedido de Helen num ligeiro gesto de cabeça somente para se livrar logo da moça, enquanto se levantava para retornar a cabine que seria seu quarto até o último dia de vida do navio.

O navio dos sonhosOnde histórias criam vida. Descubra agora