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13/04/1912.

Depois de passar por momentos desagradáveis em vida, Luiz jamais imaginou que um dia sentiria falta de alguém novamente. Amanheceu querendo ver seu filho outra vez. Queria pegá-lo no colo e sair para se divertir com ele, algo que nunca aconteceu antes.

Também quis passar um tempo com Helen e a mesma não apareceu em sua cabine até a hora do almoço – não que ela tivesse prometido algo semelhante. Mas sua presença o distraía e o fazia se sentir bem.

Helen e o historiador somente se encontraram ao final da tarde, quando o sol estava se pondo. A moça começou a falar cheia de entusiasmo sobre o que gostaria de fazer com seu filho e sua amada mãe quando chegasse na América e Luiz sentiu uma inesperada emoção tomar conta de si: a nostalgia.

O olhar de Helen visando o futuro era esperançoso e tinha um quê de inocência, bem como o olhar de Luiz antes de ter seus primeiros contatos com a dor. Problemas o moldaram. O passado se via aparente na fisionomia do rapaz. Uma amargura enraizada que chamou a atenção de Helen.

– Seu rosto mostra o que eu sempre via no espelho da casa onde eu vivia antes de embarcar no Titanic. Por que não me fala um pouco sobre você e também sobre essa... aflição que o adorna? Talvez se sinta melhor.

Luiz não a respondeu.

Ele pensou em Ingrid ao olhar para Helen e se sentiu um miserável. Não bastasse as duas serem idênticas em aparência, ambas tinham a bondade como característica mais forte em comum. Bondade direcionada a quem não era digno de tê-la. Helen não sabia quem era o verdadeiro Luiz Amaral. Qual seria sua reação quando finalmente o conhecesse?

– Falar de si mesmo nem sempre é fácil – disse Helen mirando-o com ternura. – Podemos conversar sobre isso quando se sentir à vontade. Afinal, ainda temos alguns dias de viagem pela frente e...

– Não temos não – cortou Luiz decisivamente. – Eu não sei o que você vai pensar, Helen, mas eu preciso que me escute com atenção.

Não foi uma tarefa fácil para Luiz expor ao menos uma parte do que o seu coração pedia. Nunca o escutava e precisou de alguns instantes para preparar suas palavras antes que elas fossem proferidas. Antes de mais nada, contou sobre seu trabalho e de onde tinha vindo. E quando falou sobre João Pestana e o que teoricamente ele havia feito, Helen o interrompeu com incredulidade.

– Então você veio do futuro por mágica e este navio vai afundar? Aprecia histórias de fantasia, Sr. Amaral?

– Isso não é uma história de fantasia - rebateu Luiz categórico. – Você tem que acreditar no que digo!

Helen parecia ofendida.

– Não gosto que caçoem de mim.

– Acha que estou brincando? – replicou Luiz com indignação. – Fique sabendo que há três dias eu pouco me importava com o que aconteceria com qualquer pessoa neste navio. Quando entendi onde eu vim parar, só fiquei pensando em um meio de me salvar. Porém, estar com você acabou... mudando um pouco minha forma de pensar.

Helen fez uma pausa enquanto analisava a expressão de Luiz.

– Então você se importa com o que pode acontecer com uma completa estranha? Isso soa diferente para mim.

Os lábios de Luiz vacilaram, pois se moveram e não produziram som. A primeira vez que ele se importou de fato com alguém foi há muito tempo, quando sua querida mãe ainda estava viva.

Nos últimos meses de vida da Sra. Edilene Amaral, os pais de Luiz atravessaram uma terrível dificuldade financeira devido à crise pairando sobre o país. Eles não tiveram escolha a não ser pedir auxílio aos amigos e aos parentes. Contudo, embora fossem numerosas, nenhuma dessas pessoas demonstrou o mínimo de empatia pelo casal.

Edilene deixou a dificuldade nas mãos do destino. O pequeno Luiz, que não entendia muito sobre problemas de adulto, torcia para que eles acabassem de uma vez. A situação então chegou a um nível crítico quando Edilene fora diagnosticada com câncer de mama e veio a falecer seis meses depois de um tratamento intenso e doloroso.

Dois anos se passaram e a crise financeira do Brasil havia amenizado. Houve pelo ar uma falsa sensação de paz e recomeço. O futuro historiador mal superava a perda da mãe, quando seu pai também o deixou. Este, vítima do mal do século: a depressão.

Durante o enterro do pai, Luiz acompanhou a contragosto um bom número de pessoas lotando o cemitério. Muitos chorando sobre o caixão. As mesmas pessoas que se recusaram a ajudar seus pais quando eles precisaram; que sabiam das dificuldades deles e não ofereceram um centavo para ajudar. Onde estavam todos esses amigos e parentes, quando o mal ainda não havia ganhado força?

Luiz foi morar com a avó e com ela ficou até o amadurecimento. Com o passar dos anos, ele perdeu a capacidade de se envolver emocionalmente com as pessoas. Olhou então para sua réplica do Titanic: o transatlântico que não somente o inspirou a se tornar historiador, mas a se tornar mais forte.

A embarcação era um expoente ainda que submerso. Carregava diversos segredos e histórias impactantes consigo. Para aqueles que não entendiam sobre arte, o navio naufragado não passava de um monte de lixo marinho, mas era necessário ver além para enxergar sua grandeza e Luiz soube fazê-lo. Se inspirou nesse monumento até incorporá-lo em sua vida.

Desse modo, fora blindado contra a aproximação de todo tipo de pessoa até conhecer sua futura ex-esposa Samantha Machado, com quem teve um filho. Como os anos de Luiz se tornaram solitários, ele imaginou que abrir uma brecha em sua proteção contra os humanos extinguiria o vazio que ele começou a sentir, mas estava errado.

Luiz não conseguiu – embora tivesse tentado – amar sua esposa e se importar com ela como deveria e o casamento ruiu um ano depois do seu início. O filho recém-nascido dos dois, acabou ficando com Samantha. Ela, no entanto, sabia da importância que era para um filho ter um pai presente em sua vida durante a infância e começou a insistir por telefone que o garoto passasse os fins de semana com Luiz.

Todavia, o mesmo já havia bloqueado os sentimentos uma vez mais para se manter afastado afetivamente de qualquer pessoa. Ele passou a inventar desculpas diversas para não ter muita proximidade até mesmo com o próprio filho.

Luiz estava certo de que sua vida seria daquela forma até o fim dos seus dias. Porém, inesperadamente João Pestana surgiu pondo, não somente o Titanic, como Helen Candee em seu caminho. A partir disso, toda a armadura forjada começou a se desfazer.

– Sim, agora eu me importo com você – respondeu por fim o historiador, com toda a sinceridade que conseguia expressar. – Parece que depois que nos conhecemos eu estou conseguindo enxergar outra vez toda luz que perdi. E ironicamente é a luz do Titanic que está bem perto de se apagar.

Os dois ficaram se entreolhando em um silêncio duradouro.

 Acreditar ou não? 

Helen tinha em sua face uma expressão indecifrável e foi a primeira a quebrar o silêncio depois de suspirar longamente.

– Sr. Amaral, quando que o navio vai afundar?

– Infelizmente, amanhã. Mas pode ser que eu tenha um plano – Luiz se apressou em acrescentar ao ver que Helen se assustara. – Talvez a história deste navio ainda mude. Só peço que confie em mim, por mais difícil que seja.

O navio dos sonhosOnde histórias criam vida. Descubra agora