III

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Segunda parte

11/04/1912.

Em apenas três dias, toda a monumental estrutura do Titanic estaria no fundo do Atlântico Norte. E o que sobrasse dele seria descoberto apenas no primeiro dia de setembro do ano de 1985. Luiz sentia calafrios só de imaginar seus restos mortais sendo resgatados para serem expostos nos museus da vida – isso, contando que seriam mesmo encontrados.

Embora o historiador considerasse o Titanic uma exímia obra de arte, ele não queria fazer parte dela. Aquele velho amaldiçoado, como ele pôde? Pensando melhor, o jogaria no mar independente das consequências que viriam a seguir. Entretanto, os dois não se viram mais desde o seu último encontro e as horas avançavam sem se poupar.

A noite então cobriu o céu com sua escuridão dominadora. O movimento dos passageiros deu uma diminuída após a realização das refeições noturnas. Luiz se alimentou sem muita vontade no salão de jantar da terceira classe enquanto ainda pensava no que faria para evitar a própria morte.

No dia anterior, o Titanic atracou em Cherbourg-Octeville (no norte da França) para receber outros passageiros. Já no dia póstumo, um pouco depois de Luiz ter despertado em sua nova cama, o transatlântico havia acabado de deixar um porto em Queenstown, na Irlanda. E naquele instante, navegava em direção a América e só pararia quando atingisse o maldito bloco de gelo que selaria o seu destino. Isso apenas significava que as circunstâncias estavam contra.

Luiz passou por sua cabine e não viu sinais de João. Retornou para o convés onde falou com ele pela última vez e de igual forma não o encontrou. Estava por conta própria e teria sido outra vez dominado por seus temores, não fosse ele esquadrinhar Helen Candee próxima a plataforma de ancoragem. Parecia chorosa e tentou disfarçar suas lágrimas quando mirou o rapaz que conheceu mais cedo.

Os dois se cumprimentaram e, embora o historiador não quisesse a companhia de Helen – e ele não deixou que o fato transparecesse – não evitou sua presença. Talvez por Helen ser surpreendentemente parecida com Ingrid, o que não era tão ruim. Gerava familiaridade.

Luiz então cogitou se por acaso João teria envolvimento com essa absurda coincidência. E se Helen fosse a chave para algum detalhe ainda oculto sobre essa viagem no tempo?

– Pelo visto você gosta da terceira classe, embora não pertença a ela – comentou o rapaz. – É no mínimo curioso, para a época que vivemos.

– Então estou incomodando? – perguntou Helen cabisbaixa.

– Não é isso. Apenas me pergunto o que faz uma dama da primeira classe se sentir tão interessada na parte do navio que ninguém se importa.

Luiz fingia não ver os olhos tristes da senhorita. Jogou o anzol e esperava, a partir dali, fisgar alguma informação que o ajudasse com seu problema. Os olhos de Helen então se refletiram nos globos oculares do historiador e ele pôde ver com clareza as lágrimas ganhando posições.

– A verdade é que eu sempre pertenci a terceira classe – admitiu Helen em um olhar distante. – Engraçado que eu nunca tive boas condições financeiras, mas sempre fui feliz. E a duras penas aprendi que a fortuna apenas gera pessoas interesseiras que fingem se importar com o próximo. Nos aposentos da primeira classe, as pessoas são todas assim. E ficam medindo seus patrimônios afim de descobrir quem é o mais rico, como se esse tipo de colocação fosse determinante para a vida.

Luiz ouviu as palavras de Helen como se tivesse ganhado uma forte bofetada. Ele nunca fora um milionário. Porém, se fazia aprumado o suficiente para tratar as pessoas como se elas sempre fossem inferiores a ele.

Helen então expandiu os detalhes de sua aflição. Certa vez, um magnata aparecera em sua vida e se mostrou interessado em sua pessoa. Helen tinha somente 16 anos quando sua mãe fez com que ela se casasse com esse mesmo homem para lhe garantir um bom futuro. Tal iniciativa fora o maior motivo de arrependimento da Sra. Candee.

O magnata revelou-se um homem de coração frio em poucos meses de matrimônio. Mostrou que o seu mundo girava unicamente em torno do dinheiro. Quando quis se afastar do marido, Helen descobriu que estava grávida. E como tanto ela quanto o bebê custavam a ter o mínimo da atenção do pai, Helen esperou pelos três anos de vida do pequeno e decidiu que não valeria a pena continuar vivendo desprezada.

Em razão disso, ela agora estava no Titanic, navegando escondida do marido para onde estava seu filho passando o mês com a avó materna. Para Helen, foi um golpe de sorte garantir um lugar no navio, visto que as únicas passagens disponíveis quando as comprou eram pertencentes a primeira classe.

Quando em terra o magnata percebesse a ausência de sua esposa, seria tarde para arrependimentos – presumindo que ele se arrependeria dos seus descasos. Helen não queria ser encontrada. Criaria o filho sozinha e o ensinaria seus princípios para que, independente de seu padrão de vida, ele jamais se esqueça o que é amar.

Inconscientemente Luiz se colocou no lugar do ricaço e se sentiu incomodado. O magnata não veria mais seu herdeiro e o jovem historiador não se lembrava da última vez que havia escutado a voz do seu filho.

– Acho melhor eu parar de falar da minha vida trágica – sugeriu Helen percebendo o olhar do rapaz. – Não foi minha intenção proporcionar melancolia para esta noite. O que acha de nos divertirmos um pouco, Sr. Amaral? Para compensar. Eu soube que vocês da terceira classe farrearam bastante no poço do convés, na noite de ontem. Pode ser que esse tipo de manifestação esteja ocorrendo outra vez e desde que eu me casei, não sei o que é estar em uma festa de verdade.

Luiz não rejeitou a sugestão da moça, pois precisava espairecer. E havia estudado bastante sobre o navio para confirmar que festas como as citadas por Helen de fato aconteceram e estariam acontecendo naquele momento. Ele não havia conseguido as informações que desejava. No entanto, havia despertado em si um segundo motivo para lutar por sua vida.

O navio dos sonhosOnde histórias criam vida. Descubra agora